Quando falei sobre Friday’s Child eu expliquei alguns motivos pelos quais as tramas de amadurecimento são tão populares no cinema. Uma das razões é a capacidade de empatia do público com o indivíduo que entra na vida adulta. Porém, existe um outro momento de passagem tão curioso e confuso quanto este, mas muito menos abordado nas telonas: a transição entre a infância e a adolescência. Nessa fase o corpo muda numa velocidade que a mente não consegue acompanhar e nós ficamos completamente sem saber o que está acontecendo.
De maneira competente, Oitava Série, a estreia de Bo Burnham como diretor, cobre justamente esse momento da vida de Kayla Day (Elsie Fisher). Na trama, vemos a garota introvertida tentando sobreviver aos últimos dias no Ensino Fundamental. Por meio de sua visão, experimentamos novamente ritos de passagem clássicos da idade como a festa na piscina, o primeiro crush e a construção de novas amizades.
Logo de início o longa se apresenta como um retrato da juventude moderna (só de escrever juventude moderna eu já me sinto muito velho). Diferente dos colégios dos anos 1990 e 2000, as escolas agora são dominadas por tecnologia e os alunos mal interagem entre si. A capacidade de verbalização oral entre os pré-adolescentes é quase nula e todos eles preferem navegar por timelines infinitas nas redes sociais a fazerem algum tipo de contato visual.
Com Kayla não é diferente. Ela tem uma extrema dificuldade de falar o que está sentindo seja com o pai, seja com alguns conhecidos. Em quase todos os momentos, ela parece estar desconfortável e age de maneira pouco natural. Sua postura é acabrunhada e sua voz é um resmungo gutural quase incompreensível. Porém, tudo isso muda quando ela fica em frente a uma câmera e grava vídeos para seu canal no Youtube. Quando está sozinha com a tecnologia, a jovem demonstra um pleno domínio da língua inglesa e derrama uma psicologia motivacional diretamente relacionada com as situações que vive na escola. Sua postura é confiante e sua voz é decidida. Ela realmente parece outra pessoa.
O interessante em tudo isso é que Kayla não se enquadra no ditado “faça o que eu digo mas não faça o que faço”. Diferente do esperado, ela começa realmente a agir de acordo com os conselhos que fala em seus vídeos e isso tem uma influência direta nas situações que passa a viver. Nesse sentido, o trabalho do roteiro se mostra primoroso por conseguir construir uma personagem jovem e complexa, que possui conflitos reais, palpáveis e contemporâneos.
Durante os rápidos 90 minutos nos quais o filme se desenrola, vemos a adolescente descobrir novos sentimentos, se perder e ao mesmo tempo se encontrar. Kayla entende que existe uma diferença entre quem ela é por dentro e a jovem que todos os outros veem na escola. Ciente dessa realidade dupla, ela busca chegar num meio termo entre as duas enquanto trilha uma jornada de autoconhecimento.
Em meio a esse mar de sentimentos, outros temas atuais também são pincelados no título. De maneira necessária e com grande carga reflexiva, vemos como surge a cultura do estupro, tão comum nas faculdades americanas. Numa primeira fase, ela se personifica em Aiden (Luke Prael), um adolescente boçal da sala de Kayla que é capaz de terminar relacionamentos caso as garotas não mandem nudes. Esse tipo de criaturinha se desenvolve a ponto de se tornar Riley (Daniel Zolghadri), um aluno veterano do Ensino Médio que ri de piadas machistas, defende pervertidos, coloca a culpa de um assédio sexual na vítima e, por que não, decide que é uma boa ideia cometer ele mesmo uma lista de crimes sexuais. Daí para estuprar uma caloura na faculdade é um pulo.
Pessoas como Aiden e Riley são representações cinematográficas de homens reais, que praticam abusos contra mulheres de todas as idades. Nesse sentido, Oitava Série faz um serviço social por mostrar que tais comportamentos não devem ser tolerados sob nenhuma hipótese. Mesmo que na trama a personagem de Kayla não saiba como reagir diante de determinadas situações devido à sua inocência, o longa se destaca por trazer tais assuntos para a roda de debates.
Aliado a tudo isso temos uma técnica que trabalha em sincronia com os demais elementos narrativos para criar um ambiente cênico coeso. Por várias vezes a câmera inicia uma cena com um close no rosto de Kayla e vai gradativamente se afastando. Esse tipo de movimento atesta que a história daquela garota é o ponto central do filme e, ao mesmo tempo, mostra como ela se sente oprimida diante das situações que tem que enfrentar no dia a dia. Além disso, o filme também atribui novos significados a enquadramentos clássicos. O contra-plongée, geralmente utilizado para engrandecer um personagem, aqui se mostra como uma visão subjetiva do celular, que sempre ilumina e enxerga o rosto da garota de baixo para cima.
Tais características aliadas ao belíssimo trabalho de atuação de Elsie Fisher conferem a Oitava Série um ritmo envolvente e cativante. As ansiedades e dúvidas de Kayla também se tornam nossas e em diversos momentos nos sentimos ansiosos e preocupados com o que vai acontecer, assim como a protagonista. Ao ver o filme, relembramos as dificuldades do crescimento e as diferenças entre gerações. Ao mesmo tempo, ficamos com o sorriso no rosto ao constatar que o empoderamento e o protagonismo feminino são assuntos que precisam ser trabalhados em todas as idades. O desejo que fica é que 2019 traga mais filmes como este.