Em Trama Fantasma, o diretor Paul Thomas Anderson entrega um misto de drama romântico com pitadas de suspense psicológico, rendendo seis indicações ao Oscar 2018, inclusive para melhor ator a Daniel Day-Lewis, que decidiu se aposentar após esse filme – infelizmente. Em termos de linguagem cinematográfica, a obra apresenta um sofisticado e delicado trabalho de encenação, ora valorizando os rostos sutilmente expressivos do ótimo elenco e ora focando na linguagem corporal dos atores por meio de planos distantes e de longa duração, além de desenvolver um meticuloso trabalho com o som, tanto na edição que enfatiza um ou outro elemento em cenas importantes, quanto na trilha sonora emocionante de Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead. Diante de uma cinematografia tão variada, Paul Thomas Anderson continua surpreendendo já que Trama Fantasma é uma obra única e distinta. No entanto, o filme segue uma linha característica do diretor ao focar nas personalidades e comportamentos dos seus personagens e não tanto em tramas de roteiro ou no contexto histórico retratado. Assim, a narrativa realiza justamente um estudo de personagem que demonstra como as “supostas” banalidades de nosso cotidiano, quando solidificadas em anos de rígida rotina, podem ser extremamente opressoras com as pessoas em nossa volta, podendo ocasionar em relacionamentos abusivos e desgastantes. Mesmo que as relações nesse cotidiano tenham nascido a partir de sentimentos como respeito, admiração e amor, o peso das convenções individuais em Trama Fantasma é tão desgastante que sufoca qualquer possibilidade de espontaneidade e liberdade nas relações profissionais ou afetivas.
O filme se passa na Inglaterra dos anos 1950, mostrando o dia a dia do bem sucedido estilista Reynolds Woodcock, cuja clientela é formada por indivíduos da alta sociedade europeia. Obcecado pelo trabalho, ele passa maior parte do tempo produzindo vestidos ao lado de sua irmã Cyril (Lesley Manville) e de várias mulheres que o auxiliam em um intenso ritmo de produção na Casa Woodcock, que é também onde o protagonista vive. A rotina começa a mudar quando ele se apaixona pela jovem e humilde Alma (Vicky Krieps), que deixa o trabalho de garçonete no interior para viver ao seu lado.
Em comparação aos longas anteriores de Paul Thomas Anderson, Trama Fantasma deve ser a sua obra mais lenta. Não que os outros filmes sejam frenéticos, pelo contrário, uma das marcas do diretor é o seu trabalho mais dilatado com o tempo – com algumas exceções como o anterior Vicio Frenético (2014). Mas vale ressaltar que o ritmo de Trama Fantasma não é gratuito. Reynolds Woodcock é um personagem rígido com a sua rotina e não suporta qualquer tipo de interrupções, desde algum comentário negativo até simples passadas de manteiga em torradas de manhã. O silêncio valorizado pelo personagem é trabalhado na própria forma do filme, pois a performance dos atores é marcada principalmente por gestos e olhares em uma encenação que dá tempo ao tempo. Esses elementos ganham novo realce a partir da viva trilha sonora de Jonny Greenwood. O som, aliás, é trabalhado de uma maneira peculiar, pois há momentos em que simples movimentos, como o enchimento de uma xícara de chá ou o chacoalhar de dados, é aumentado propositalmente, causando incomodo no protagonista e até no público, já que aos poucos vamos nos acostumando com o ambiente silencioso imposto por Reynolds. Assim, o som ganha um valor simbólico, representando uma certa espontaneidade que é renegada pelo estilista e as pessoas em sua volta. Sobre a criação dessa atmosfera, é possível até sentir uma espécie de perigo para o público em geral. Se a empatia com o personagem principal ocorrer, e o espectador entrar em seu mundo, as mais de duas hora do filme passam normalmente. Mas caso ocorra alguma distração, ou o espectador simplesmente não se conecte com Woodcock, o filme pode parecer arrastado. O “esforço”, de qualquer forma, vale bastante a pena, pois Trama Fantasma é o tipo de filme que não se limita como obra artística e não subestima o espectador, trabalhando com um ritmo próprio para construir a atmosfera imersiva de sua proposta principal.
Se a relação entre os atores prioriza algumas sutilezas – ainda que intensas – a encenação e a montagem do filme carregam uma mescla estilística bem ao estilo de Paul Thomas Anderson. Um primeiro estilo trabalha com uma certa continuidade intensificada, no qual vários planos e contra planos são organizados por uma montagem padrão cujo objetivo é valorizar os rostos dos atores. Um segundo estilo trabalha com planos de longa duração cujo objetivo é valorizar a linguagem corporal dos atores e o que a relação entre espaço e esses corpos pode dizer sobre a cena em questão. Paul Thomas Anderson trabalha com esses planos desde o seu primeiro longa, Jogada de Risco (1996), apresentando ótimos resultados em Sangue Negro (2007). Inclusive, ao analisar uma cena especifica do primeiro trabalho do diretor com Daniel Day-Lewis, o pesquisador David Bordwell comentou como esses planos longos configuram um estilo que era comum na Hollywood clássica, mas que, hoje em dia, é raro no cinema norte-americano, pois a maioria dos diretores contemporâneos são inclinados a realizarem vários closes, cortes rápidos ou intensos movimentos de câmera, tanto em filmes de ação até dramas ou comédias românticas. Por isso a importância de diretores autorais como Paul Thomas Anderson, Jim Jarmusch e até Quentin Tarantino, pois ao terem mais poder sobre o corte final de suas obras, eles podem resgatar recursos estilísticos aparentemente esquecidos pelo cinema mainstream atual.
Vale ressaltar que esses planos longos não ocorrem em cenas em movimento que acompanham, por meio de acrobáticos movimentos de câmera, algum personagem andando ou correndo. Pelo contrário, os planos longos de Paul Thomas Anderson são estáticos com pouquíssimos movimento de câmera. Em filmes tão diversos como os do diretor, se deve questionar o que esses planos podem acrescentar aos filmes realizados. No caso de Trama Fantasma, o uso é um dos mais coerentes em toda cinematografia do cineasta. Com a câmera distante, podemos ver o corpo esguio de Daniel Day-Lewis levemente recuando diante de alguma possibilidade de transformação de sua rotina, e também podemos identificar a intensidade de sua personalidade – seja nos momento de conquista, entrega ou confronto – quando seu olhar e corpo ficam rígidos. Nesses momentos, os planos não apresentam muitos segredos – não se trata de guiar a atenção do espectador por meio de recursos como a centralidade ou movimentação coreografada de corpos ou gestos. Não. Os planos servem pura e simplesmente para mostrar uma intensidade contida, que é personificada perfeitamente nos olhares quase hipnóticos entre Woodcock e Alma. Um ótimo exemplo de tal força é um plano que tem pouco mais de três minutos de duração, somente com os dois personagens, em que a câmera começa debaixo de uma mesa e lentamente se move para frente, demonstrando bem o poder que a linguagem corporal pode ter, já que cada um dos atores apresenta diferentes nuances, mas com os atores falando muito pouco, principalmente Alma nesse exemplo. E esta capacidade se dá graças a performance dos atores em um plano distante de longa duração.
Grande parte do segundo ato é focado na construção de uma atmosfera intimista e sufocante ao redor do personagem de Daniel Day-Lewis. Contudo, no inicio do filme, uma das principais sentimentos explorado no protagonista é a saudade intensa que sente por sua falecida mãe. Tal questão é trabalhada pontualmente no segundo ato do filme, o que pode ser problemático, pois a alternância entre momentos rudes e afetuosos do protagonista está relacionada com esse sentimento. E a saudade não é pequena – diante da recorrência de visões com sua mãe, Woodcock chega a comentar a sua irmã que “é reconfortante pensar que os mortos estão tomando conta dos vivos”. Essa devoção tem reflexos na vida tardia de Reynolds. No inicio do filme, ele dispensa uma jovem mulher que mora na sua casa (de lar e de trabalho), além de reencontrar uma condessa, que aparentemente foi uma antiga paixão, para experimentar um novo vestido. No primeiro encontro com Alma, ele tira as suas medidas e experimenta roupas. Ou seja, a vida afetuosa do protagonista é inerente ao fazer artístico que sua mãe lhe ensinou. Existe uma conexão, ainda que tênue, entre as companheiras de Woodcock com sua mãe, que pode ser constatada no segundo ato quando o personagem, fragilizado pelo estresse ou enjoo, se entrega em dias de ternura a Alma, que cuida dele com um esmero materna. No entanto, conforme comentei acima, ainda que essa dimensão seja clara, ela é muito pontual, e fica quase diluída na construção de atmosfera que o filme constrói em grande parte do filme. O espectador fica tão preso nas rotinas do protagonista que se esquece dessa dimensão psicológica e intensa do personagem. Pelo menos até o terceiro ato.
Agora vale ressaltar que os vinte minutos finais do filme são praticamente perfeitos e irretocáveis em sua execução. Contudo, para comentar mais sobre o terceiro ato preciso dar alguns spoilers, pelo menos nesse parágrafo – então pule para o próximo caso você não queira saber alguns informações sobre o final. Primeiramente, a trama: rapidamente infeliz no casamento com Woodcock, Alma decide preparar um omelete com cogumelos venenosos para seu marido. Mas as coisas ficam mais estranhas quando ela explica que está oferecendo essa comida para deixá-lo fragilizado fisicamente e cuidar dele sozinha por alguns dias. Mas as coisas ficam mais estranhas quando Woodcock adora essa confissão e se entrega a Alma. E nós ainda descobrimos que ela narrou todo o filme sentada em uma cadeira, tendo a cabeça de seu marido deitada no colo enquanto esse se recuperava. Todas essas informações são reveladas no mesmo tom de serenidade que permeou o filme inteiro. Ou seja, sem quebrar a verossimilhança da narrativa, Paul Thomas Anderson insere esse desfecho estranho e quase irreal. O efeito é impactante. Demoramos para absorver o que aconteceu. E o impacto não é somente pelo encaminhamento da trama, mas pela própria realização cinematográfica, já que as cenas finais tem uma direção primorosa. Não tenho medo de dizer que na história do cinema nunca houve uma cena de preparo de omelete realizada com tanta sofisticação, delicadeza e suspense. A trilha sonora, a performance dos atores, a montagem, a fotografia – tudo prende a atenção do espectador até o último o instante, não somente pela curiosidade em saber o que irá acontecer, mas pela intensidade desses minutos. Em sua narração final, Alma assume um discurso bonito sobre como o amor pelo seu companheiro resolve o mistério da vida. No entanto, isso me parece um pouco problemático, pois, ela não apresentou esses pensamentos subjetivos em nenhum momento antes dos minutos finais. E também acredito que esse aspecto irreal e transcendental poderia ter sido mais trabalhado anteriormente, se somando a atmosfera sufocante construída durante grande parte da obra.
Realizei a ressalva anterior pois após a exibição de Trama Fantasma fica uma sensação de que ele é marcante mais pelo seu exercício de linguagem do que por algum aprofundamento subjetivo. Ainda que a sua mensagem sobre como os relacionamentos podem se tornar destrutivos dentro de suas banalidades, ela é relativamente simples e não ganha novas nuances. Demoramos um certo tempo para identificar como Woodcock é um homem repleto de defeitos – graças a uma ótima construção não maniqueísta do personagem – mas quando constatamos a sua personalidade criticável, não há uma grande nova camada a ser acrescentada. Caso as consequências da saudade que sentia por sua mãe fossem mais exploradas, acredito que o filme ganharia um peso mais sólido, pois além de aprofundar os elementos de suspense psicológico na narrativa, exploraria esse sentimento muito humano que é o medo da morte. Digo isto pois, em minha interpretação, parte do que Woodcock buscava nas suas companheiras era uma dimensão materna, tentando, inutilmente, prolongar a existência de alguém que já partiu. No entanto, esta dimensão foi tão pouco explorada, não dando tanto fundamentos para uma conceituação mais sólida. Lembrando obras anteriores de Paul Thomas Anderson, mesmo que filmes como Magnólia e Sangue Negro tenham um enorme valor como realização cinematográfica, eles também têm o seu peso ao retratarem como a busca pelo amor ou pelo poder pode ser algo extremamente destrutivo e solitário. Já Trama Fantasma parece existir mais como uma impecável realização cinematográfica do que algo muito além disso – o que não é pouca coisa.
Mesmo com as observações anteriores, um comentário final vale a pena destacar. Em relação ao desvio inesperado de Alma no final do filme, a mudança relativamente brusca de sua personalidade não diminui a força da personagem, que se recusa em ser domesticada, ainda que não se distancie do companheiro abusivo. Acredito que o ideal seria Alma simplesmente se afirmar em um rompimento com Reynolds, deixando o seu coração amargo engasgar (usando uma expressão do próprio protagonista). No entanto, os devaneios que a personagem tem sobre o futuro com o seu marido aparentam ser mais fruto de uma rebeldia com personalidade do que uma submissão aos mandos e desmandos do companheiro. Tudo isso é revelado em uma performance delicada e forte de Vicky Kriep, que, no final, parece muito mais estilosa e poderosa do que o renomado Reynolds Woodcock.