O cartaz já anuncia: “A lei tem limites. Eles não”. Esse é uma descrição adequada para os personagens de Troco em Dobro, nova produção da Netflix dirigida por Peter Berg. A história nos apresenta à Spenser (Mark Wahlberg), um ex-policial que acaba de sair da cadeia. Para fugir de sua namorada, Cissy (Iliza Shlesinger), ele fica na casa de seu antigo instrutor de boxe, Henry (Alan Arkin), e em troca ajuda o iniciante Hawk (Winston Duke) a melhorar suas táticas de luta. Em paralelo, o grupo investiga uma onda de assassinatos de policiais em Boston.

Baseado no livro Robert B. Parker’s Wonderland, de Ace Atkins, Troco em Dobro é, à primeira vista, tudo aquilo que se espera: uma trama de investigação com pitadas de humor e cenas de ação repletas de pancadaria, tiroteios e explosões. O entretenimento ideal para aqueles que desejam simplesmente sentar em frente à telinha (ou telona) e esquecer dos problemas.

Isso porque quem assiste ao filme com um pouco mais de senso crítico, consegue notar suas fraquezas narrativas. A começar pelo roteiro. Este opta pela extrema objetividade e faz uso de flashbacks expositivos, com direito a uma narração que explica com detalhes o que estamos vendo. A afirmação do óbvio é constante, a ponto de sermos lembrados várias vezes de fatos que já conhecemos.

Com uma ação apoiada em coincidências, o texto constrói personagens rasos e estereotipados. Spenser é o típico (ex)policial durão, que segue suas próprias regras. Dono de um código moral afiado, ele sempre faz o que é certo – algo que é dito e repetido em diálogos bastante didáticos. Henry é o mentor com ares de pai permissivo e Cissy, a mulher desprezada que não consegue esquecer o amante.

Contudo, nenhum desses arquétipos limitantes é tão prejudicial quanto o de Hawk. O personagem negro é sempre caracterizado como aquilo que Spencer (a dizer, branco), não quer ser. Quando cai nas graças do protagonista, Hawk assume outros estereótipos como o negro exótico, forte ou sexualizado. O racismo estrutural se mantém em Spenser quando ele, guiado por seu censo de honra e dever, ajuda a Letitia Graham (Hope Olaide Wilson), personificando assim o arquétipo do branco salvador. Para completar, o único personagem negro que parece fugir de tais construções problemáticas ao final recai na pior delas.

Troco em Dobro também tem algumas questões técnicas no mínimo curiosas. O uso excessivo de cortes, infelizmente bastante comum nas sequências de ação, aqui dá as caras em simples diálogos, tornando cenas tranquilas em um amontoado de cortes desnecessários.

Já a fotografia faz um uso vazio de enquadramentos como o plongée e o contra-plongée. Talvez (e só talvez) a escolha dos ângulos tenha relação com o fato de Spenser ser um ex-policial e remeta à angulação de câmeras de segurança. Entretanto, tais recursos soam mais como uma técnica esvaziada de suas justificativas teóricas.

Troco em Dobro ainda flerta com a perigosa ideia de cidadãos que, desacreditados de instituições como a polícia e a mídia, decidem fazer justiça com as próprias mãos. Organizado de maneira imersiva para que o espectador esqueça do seu dia cansativo, a produção acaba se tornando, ela mesma, passível de esquecimento. Um filme que não seguirá com você após a sessão, mesmo que apresente ganchos para uma possível sequência.

Troco em Dobro

 

Ano: 2020
Direção: Peter Berg
Roteiro: Sean O’Keefe e  Brian Helgeland
Elenco principal: Mark Wahlberg, Winston Duke, Alan Arkin, Iliza Shlesinger e Hope Olaide Wilson
Gênero: ​Crime, Drama, Ação
Nacionalidade: EUA

Avaliação Geral: 2