“O campo artístico é esta arena particular, ou espaço estruturado de posições e tomadas de posição, onde indivíduos e instituições competem pelo monopólio sobre a autoridade artística.”
Loïc Wacquant – Mapear o campo artístico.
A citação acima, desenvolvida pelo sociólogo Loïc Wacquant, resume de modo objetivo a tese elaborada por Pierre Bourdieu em seu seminal livro, As Regras da Arte (1992) e serve como ponto de partida para se refletir o novo filme do diretor Dan Gilroy – Velvet Buzzsaw (2019). O filme evoca, de um modo satírico, ao contrário da seriedade da citação, a complexidade e as relações de poder que circunscrevem o mundo da arte. Atualizado em seu modo de narrar, bem como em sua própria temática, Velvet Buzzsaw – que estreiou no dia 01 no catálogo da Netflix – é uma caricatura trash horror do mundo da arte contemporânea. No filme, somos apresentados à elite financeira – aqui, a palavra aparece em negrito e em primeiro lugar, pois o que está em cena é literalmente a monetização da arte –, cultural e artística de Los Angeles.
O mundo da arte parece estar adormecido, pois não há nenhuma obra que provoque o mínimo de curiosidade em Morf Vandewalt (Jake Gyllenhaal). Será necessário que um espírito perverso tome conta de museus e galerias para despertar críticos, artistas e representantes de arte de sua inércia pelas obras.
Morf Vandewalt é um renomado crítico de arte, exêntrico e egóico, que atua na cooptação de artistas para transformá-los em celebridades; o crítico escolhe e faz os seus artistas. A sua assinatura é o suficiente para transformar qualquer artista ou obra em um banco. Ao lado dele está Josephina (Zawe Ashton), uma mulher negra, aspirante à galerista, com a ambição de enriquecer com e pelo o mercado de arte. E, ao lado dela está Rhodora Haze (Rene Russo), voraz no modo de gerenciar o comércio de obras e dona da influente galeria haze.
O eixo central gira entorno destes três personagens, mesmo que ao longo do filme introduzam outros, que do mesmo modo vão cultivar os rótulos do mundo da arte. Os esteriótipos são inúmeros: a gangue da ganância, um artista “fora do meio”, outro artista vivendo uma crise de inspiração, a secretária, o eletricista não prestigiado, o crítico intelectual, e assim por diante. O filme poderia facilmente recair em uma narrativa clichê, mas se engrandece na medida em que o diretor abusa ironicamente dos efeitos de suspense, na direção de arte e, principalmente, na construção dos personagens.
A história se desenvolve quando um artista anônimo, Vetril Dease (Alan Mandell), aparece morto no Hall de entrada do apartamento de Joshepina. A personagem então, invade o seu apartamento e, literalmente, toma posse das obras do artista. A potência estética dos quadros chama atenção tanto de Joshepina, como de Vandewalt que, imediatamente começa a escrever um livros sobre o artista. Rhodora Raze também se envolve com as peças na intenção de monetizá-las. O que os personagens não percebem é que os quadros invocam um espírito que persegue todos que gananciosamente se aproveitem deles. Aí que, tanto a performance dos atores como as características – que, particularmente, beiram à bizzaria – dos personagens fazem com que o filme se destaque e, realmente promova uma reflexão, mesmo que comicamente, sobre a ganância.
As mortes, os conflitos, as disputas, as brigas de ego não são suficientes para abrir os olhos dos personagens que estão completamente encantados – aqui, a palavra exerce duas funções, pois os personagens permanecem em êxtase tanto pela qualidade sublime das pinturas, como pela rentabilidade das obras – pelos quadros de Dease. Mas, uma das questões cruciais que o filme aponta é: quando nos colocamos diante de uma obra, nós a vemos em sua autonomia ou observamos tudo que a circunscreve? Ou, melhor ainda, vemos quanto ela vale $$$? A resposta parece óbvia, pois o que está em jogo, ao menos no filme, é o capital cultural, econômico e simbólico que os quadros de Dease movem dentro do campo artístico.
No decorrer do filme exposições são realizadas, quadros são escondidos, segredos são revelados e, a neurose se intensifica entre os personagens. Nessa dinâmica de toma lá da cá, o filme pauta questões que estão presentes no cotidiano mais prosaico, porém as intensifica ao deslocá-las para o mundo da arte.
Uma sentença que aparece em primeiro plano no início do longa-metragem, tatuada no braço de Rhodora Raze levanta uma questão e, já prenuncia o que os personagens vão vivenciar ao longo da narrativa. “No death, no art”. O que basta para nós, espectadores, é saber se realmente está frase é verdadeira ou falsa.