“Eu não achei que seria tão difícil.” O desabafo do protagonista Ricky Turner (Kris Hitchen) ainda no segundo ato de Você Não Estava Aqui funciona como um raro momento de alívio no sufocante novo filme de Ken Loach, em cartaz no Festival do Rio 2019. Assim como em seu último e premiado longa-metragem, Eu, Daniel Blake (2016), o diretor britânico leva novamente às telas personagens e situações de fácil identificação com o espectador, exibindo cidadãos comuns tentando sobreviver com um mínimo de harmonia em uma sociedade que parece só saber cobrar cada vez mais de cada um deles.
A trama, escrita por Paul Laverty (também de Eu, Daniel Blake), acompanha o sofrido cotidiano de uma família de classe média baixa na cidade de Newcastle, na Inglaterra. Cansado das constantes mudança de empregos e dos “bicos”, o pai Ricky decide começar a trabalhar em uma rigorosa empresa de entrega de produtos, com a missão de distribuir enormes quantidades de pacotes em horários cronometrados durante 14 horas diárias e seis dias por semana. O insano ritmo do novo emprego faz com que ele tenha cada vez menos tempo para estar com os filhos em formação e a esposa Abbie (Debbie Honeywood), que também passa o dia fora trabalhando como cuidadora em casas de idosos e pessoas com deficiência.
Há décadas conduzindo produções envolvendo temas sociais pela Inglaterra, Ken Loach é hábil ao explorar o cotidiano dos quatro integrantes da família Turner de forma extremamente realista e sem qualquer pressa. Conhecemos a determinação e o senso de humor de Ricky; a frustração de Abbie e o sentimento de carinho que ela nutre por todos os que a cercam, independente dos piores cenários; o amadurecimento precoce da pequena Lisa (Katie Proctor, encantadora); e a angústia contida do problemático adolescente Seb. Diálogos naturais e cenas banais, como a de um dos filhos perguntando à mãe onde está o cereal, ou uma despretensiosa conversa sobre futebol, trazem o espectador para mais perto da vida dessas pessoas. O elenco pouco conhecido, mas não menos competente, também contribui para uma geração de empatia com os personagens: é como se estivéssemos realmente conhecendo aquelas pessoas pela primeira vez.
Seja por uma garrafa de leite quase acabando na geladeira, ou na pequena mesa da cozinha que é palco de diversas reuniões da família, o design de produção do filme, de responsabilidade de Fergus Clegg, dá pequenos indícios sobre as modestas condições dos Turner. As tatuagens desbotadas pelo braços de Ricky, assim como uma fotografia do casal protagonista rapidamente apresentada em cena, também remetem a dias melhores e mais promissores dos Turner, que de nada combinam com o atual momento deles. Já o porte físico avantajado, a voz grossa, e a postura imponente do chefe de Ricky, Gavin Maloney (Ross Brewster, um policial aposentado na vida real), funciona como uma alegoria da impiedade e da ausência de bom senso do mundo corporativista.
Sem excessos ou grandes perspectivas de melhora na família, é tocante reparar como uma simples refeição ou um passeio noturno com música no carro são suficientes para dar aos Turner alguns momentos de felicidade. Aliás, um ponto interessante do roteiro de Laverty é que em nenhum momento da trama ele sugere que a família esteja à beira de passar fome, frio ou algo mais grave que comprometa a saúde ou segurança dos quatro. Há apenas exaustão, raiva e inconformidade com o sistema, e é ainda mais doloroso constatar o nível absurdo de esforço e horas trabalhadas que os pais da família precisam desempenhar para conseguirem levar uma vida apenas medíocre.
O inevitável desfecho do filme é o resultado de difíceis escolhas de personagens incansáveis pela busca de prosperidade e a manutenção de suas famílias. E a falta de assistências públicas, a esmagadora rotina capitalista e a frustração por falta de melhores oportunidades tornam impossível não relacionar a situação desses fictícios personagens ingleses com a vida de muitos cidadãos brasileiros, que veem reformas trabalhistas e previdenciárias sendo aprovadas a todo custo por conta de interesses alheios.
*Essa crítica faz parte da cobertura do 21° Festival do Rio.