Fiz o possível para não refrear minhas ideias. Se o filme ficar bom, pensava, então terei conquistado o direito de trabalhar no cinema. A Infância de Ivan teve, assim, uma importância especial: era meu exame de qualificação. – Andrei Tarkovsky

Um ano após O Rolo Compressor e o Violinista, Andrei Tarkovsky lança seu primeiro longa metragem: A Infância de Ivan, baseado no conto de Vladmir Bogomolov – e a primeira pergunta que eu faço é: o que aconteceu com esse homem para sair daquela idéia de infância idílica e cheia de cores do seu trabalho de conclusão de curso para a perda da inocência dentro da guerra?

Brincadeiras à parte, o primeiro filme realizado por Tarkovsky depois de sair do Instituto de Cinematografia é realmente uma guinada dentro de tudo que já havia sido feito pelo diretor. Podemos ver claramente as influências que o cercavam, sejam elas da Mosfilme (quem comissionou o filme), das obras que o diretor entrou em contato no Instituto ou a sua própria linguagem cinematográfica tentando ganhar forma. 

 E, como diria o esquartejador, vamos por partes. 

A Infância de Ivan

Na época em que o filme estava sendo rodado, a censura ainda era muito forte na antiga União Soviética. O conceito do homem soviético  e o que ele consumia ainda permanecia e, com isso, as restrições do que era viável ou não de ser produzido. Muitos dos filmes de guerra realizados na época traziam um patriotismo exacerbado, uma visão muitas vezes deturpada por conta desse controle da Mosfilme sobre suas produções. 

O roteiro que foi autorizado pela instituição foi muito modificado durante as gravações por Tarkovsky. Em seu livro Esculpir o Tempo, ele revela que muito do conto de Bogomolov vinha de um olhar quase protocolar, de um observador sempre passivo à ação, e que não era esse o cinema que ele gostaria de fazer. 

Foram ao todo 15 reuniões com a cúpula da Mosfilme até que ele conseguisse a aprovação da sua versão de A Infância de Ivan, e assim em 1962 o filme chegou aos cinemas. 

Durante sua estadia no Instituto de Cinematografia, Andrei entrou em contato com diversas obras e é visível a grande influência que o neorrealismo italiano teve sobre o seu trabalho inicial. A fotografia em preto e branco e com grande contraste de Vadim Yusov era uma tentativa de emular o trabalho de um outro diretor de fotografia que Tarkovsky admirava, Serge Urusevsky. O trabalho de câmera, sempre se aproxima das ações quando a tensão cresce ou em momentos importantes. 

A Infância de Ivan é possivelmente o filme em que mais conseguimos enxergar as inspirações do diretor que vieram de outros artistas. O longa foi também o trabalho que o permitiu se testar. Segundo seu livro, esse foi o momento em que ele pôde perceber de fato se tinha ou não o que era preciso para ser um diretor. E é aí que percebemos o começo do desenvolvimento da sua linguagem cinematográfica. 

Os sonhos, quatro ao todo durante o filme, não estavam no conto e nem no roteiro inicial. Tarkovsky queria que o público compreendesse a essência de Ivan, que aquele era ainda um menino que estava preso em uma guerra que tinha lhe tirado tudo. Mais do que isso, ele queria que o público se conectasse com Ivan, com o filme. 

É aí que começamos a trabalhar com a lógica poética que o cineasta aborda em seu livro. Tarkovsky nunca menosprezou seu público, na verdade ele fazia questão de questioná-lo e instigá-lo a fazer as conexões por si só. De chegar a suas próprias conclusões com as imagens fornecidas por ele. 

A Infância de Ivan

Nesse primeiro longa, a ideia ainda é embrionária, é a gênese de tudo aquilo que virá a ser. Conseguimos ver o nascer dessa filosofia – não temos outra maneira de chamá-la – quando vemos por exemplo a sequência do terceiro sonho, quando Ivan e sua irmã estão no caminhão com a chuva caindo sobre seus rostos e a expressão da menina vai mudando, indicando que algo muito ruim está por vir. Ou nas cenas em que Masha e Kholin estão na floresta (Masha é um caso a parte que mereceria um texto só para ela e como a sua presença muda a visão do filme mesmo sem que ela tenha nenhuma cena diretamente com Ivan), a emblemática cena do beijo sobre a trincheira. 

Ainda assim, a produção conta com uma história linear, com começo, meio e fim, por mais que partes da jornada de Ivan tenha ficado por nossa conta. A Infância de Ivan ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1962 e deixou claro que esse era só o despertar de uma mente excepcional e que traria para o cinema uma poesia jamais vista antes.

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