Acredito que o que leva as pessoas normalmente ao cinema é o tempo: o tempo perdido, consumido ou ainda não encontrado. – Andrei Tarkovsky

 

Ao escolher em seu segundo filme contar a história de Andrei Rublev, o maior pintor de ícones religiosos da Rússia, Andrei Tarkovsky abandona de vez toda e qualquer influência que existia em seu trabalho e encontra aqui, pela primeira vez, a essência de sua imagem poética. 

Andrei Rublev é vagamente baseado na vida do monge pintor do século XV, mas retrata com imensa precisão o país na época medieval, com suas paisagens e ruínas sempre expostas em planos abertos.

A decisão de falar sobre a vida de um homem que pouco se conhece deu a Tarkovsky a liberdade para entender o mundo em que o pintor viveu, como os acontecimentos de um tempo tão caótico foram capazes de criar um artista tão meticuloso e espiritual como Rublev. 

O filme conta com sete capítulos, um epílogo e um prólogo, mas as partes não estão necessariamente ligadas por qualquer tipo de lógica a não ser a emocional.

Andrei Tarkovsky afirmava que em um mundo perfeito, a arte seria obsoleta. Não haveria necessidade alguma de produzir arte, o que ele acreditava por arte – a busca nas imagens pelo belo – uma vez que já se vivia nela. E em Andrei Rublev o diretor busca encontrar na Rússia de 1400 o que tocou o pintor para que ele produzisse a sua arte.

Precisamos sempre nos lembrar que Tarkovsky entendia a arte, principalmente a que ele se propunha a fazer, como uma tentativa de achar a sua verdade absoluta do mundo, da existência do homem na terra. Religioso, muito do seu trabalho mais pessoal vai passar pela espiritualidade e pela instituição da religião Ortodoxa – não com um fanatismo cego, mas com um olhar questionador e às vezes até mesmo desafiador.

No prólogo de Andrei Rublev, que não é referenciado novamente e não parece ter qualquer tipo de correlação com o restante da história, vemos um homem levantar voo num balão enquanto outras pessoas tentam evitar que isso aconteça. Quando Tarkovsky muda o ponto de vista para o homem sobrevoando os pastos e lagos, somos tomados pela mesma euforia que ele está sentindo, vendo o mundo de uma maneira completamente diferente, até o momento em que ele se choca com o chão.

O diretor nos convida a sentir. O prólogo, que parece não ter conexão com o restante do filme, existe para que nós, como público, nos sujeitemos à ideia de não seguir uma lógica, de não tentar entender ou fazer sentido de todas as coisas que aparecem em cena. Somos convidados a viver em outro tempo, outra era, onde nada é o que parece e nenhuma certeza é explicada, logo, não existe certeza alguma. 

 Durante os episódios, vemos Rublev em situações completamente passivas. Nada, em absoluto, é causado por ele. Ele existe nesse mundo e é influenciado por ele, mas é quase como se o pintor não estivesse ali. Como se por um passe de mágica ele sumisse, nada seria afetado pela sua ausência. 

Claro que isso é o próprio Tarkovsky brincando com a nossa percepção, uma vez que o filme se torna importante exatamente por conta do impacto que a arte de Rublev tem sobre toda a história da pintura de ícones. Fica claro que o que importa não é o que está acontecendo naquele momento, mas sim como isso molda a visão de Rublev sobre a arte, e por consequência, a nossa.

A construção das imagens dentro da montagem tonal de Eisenstein faz com que muitas vezes o que estamos vendo aparentemente não tenha ligação com a história principal, até porque muitas vezes o próprio Rublev não faz parte do que acontece na tela. Mas é assim que podemos chegar mais perto do homem que foi o pintor, e esquecer a figura histórica que ele se tornou. 

Muitos críticos identificam a estrutura da história adotada por Tarkovsky como seguindo o flagelo de Jesus Cristo, durante um dos capítulos vemos uma lindíssima encenação da crucificação de Cristo como se fosse um homem russo e talvez aí a comparação se faça real. Mas eu acredito que o diretor sentia compaixão pelo seu objeto de estudo, que ele percebia no pintor muito de si e de sua arte.

Enquanto seguimos Andrei Rublev pelos diversos lugares que passou, vemos questionamentos sobre a fé pagã, a religião Ortodoxa, liberdade artística, dualidade política. O diretor utiliza da obra para questionar o nosso presente, não para desvendar o passado.

Por isso o longa foi censurado na União Soviética e só foi lançado, numa versão cortada, em 1971, mas passou nos cinemas em Moscou por uma semana em 1966. Em 1969 ganhou o prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes. 

Nunca vemos o monge realmente pintando algo. Estamos sempre antes ou depois, nunca durante, junto dele. Porque o que importa para nós não são as imagens em si, mas como elas vieram a ser. 

No final do filme, quando a tela ganhar cor, somos convidados a apreciar a pintura de Andrei Rublev mas nunca na sua totalidade. Vemos os detalhes, os cantos, as arestas que transformam as imagens em obras de arte sem igual. Tarkovsky nos mostra que podemos analisar a vida da maneira que quisermos, mas o resultado final será sempre o mesmo. 

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