Por Frederico Cabala
É espantoso que seja comum as pessoas partilharem o mesmo espaço com centenas de outras e dividirem suas vidas apenas consigo mesmas – solitárias como números primos. Cada. Um. Na. Sua.
Edifício Master nos mostra que, mesmo circunscritos em solidões, homens e mulheres podem ser personagens cheios de rascunhos de histórias e narrativas a serem passadas a limpo.
O toc toc de Eduardo Coutinho abre portas e adentra em universos particulares. Neste filme de 2002, o diretor se propôs a passar uma semana filmando moradores e funcionários no cotidiano de um edifício em Copacabana, a uma quadra da praia. São 276 apartamentos conjugados, vinte e três por andar, nos quais habitam uns 500 moradores. A própria equipe do filme alugou um imóvel no mesmo condomínio por um mês durante as filmagens, o que rendeu o documentário posterior Apartamento 608, de Beth Formaggini, interessante para se perceber o método Coutinho de fazer cinema.
Uma ideia ousada e um tanto arriscada para o documentarista. Coutinho tinha retomado seus laços com o cinema havia poucos anos. Realizara Santo forte e Babilônia 2000 nos três anos anteriores, ambos os filmes bem-sucedidos rodados em bairros de classes mais baixas. O diretor de Cabra considerava isso fundamental. Para ele, pessoas das classes média e alta não rendiam boas entrevistas, pois tinham muito a perder.
Assim, fazer um filme em um prédio de Copacabana seria também pisar em um terreno desconhecido, regra a que o diretor se apegou a partir de então, testando cada vez mais os limites do próprio cinema.
Talvez para surpresa do próprio diretor, fato é que os moradores do Master revelaram conter tanta força narrativa quanto os personagens anteriores. Tanto que Edifício Master é um dos filmes mais longos do diretor, com quase duas horas e uma extraordinária costura de histórias isoladas de pessoas que se avizinham. São 34 personagens entrevistados, com tempo de fala semelhante entre todos, do porteiro ao síndico.
Questões emblemáticas dos filmes do cineasta, como balanços de vida, percepção da morte, memórias, afetos e opiniões ecoam nas falas de pessoas aparentemente comuns, mas peculiares. É o caso de Sérgio. O síndico que botou ordem no lugar, antes zona de prostituição, conta que sempre tenta primeiramente ser Piaget e, quando não obtém sucesso, encarna Pinochet. O morador José Carlos, por sua vez, relata ter vindo da zona norte da cidade e diz sofrer discriminação quando retorna ao seu bairro de origem, pois as pessoas acham que ele é rico, ainda que de fato seja desempregado. Rita e Lúcia são um casal que vivem bem apesar da diferença de personalidade, com Lúcia brincando sobre a vã tentativa de fazer a parceira aprender a cozinhar. Luiz, o porteiro, se emociona por ter achado um bebê na lixeira do prédio, o que o fez ter revisitado a própria história.
Entre tantos e únicos, chama atenção a moradora Daniela. De fala vagarosa e um jeito à primeira vista (e à última também, convenhamos) singular, Daniela certamente seria alvo de deboche em diversas outras situações, mas revela rara lucidez e inteligência que, no filme, faz dela um ser de forte empatia.
Pra não falar sobre Henrique, o senhor que certa feita conheceu Frank Sinatra e o acompanhou em My Way. Na verdade, ou na inverdade, pouco importa se o caso é autêntico ou não, pois é contado em uma grandiosidade digna do blue eyes.
Edifício Master foi um dos filmes mais bem recebidos de Eduardo Coutinho. No lançamento, conseguiu levar 80 mil pessoas às salas de cinema – uma multidão para um documentário nacional.
Talvez o público, principalmente o carioca, tenha se identificado com a realidade que se expressa tangencialmente pelo filme. Um tópico interessante é notar as transformações do Rio de Janeiro a partir do que se projeta no filme. Em algum momento, um personagem revela o valor do aluguel de um conjugado: 350 reais. Um preço módico diante do que vale atualmente, muitas vezes multiplicado mesmo se levada em consideração a inflação. Após os megaeventos que fizeram do Rio um tabuleiro de banco imobiliário, qual é o perfil do atual morador do Edifício Master, no filme ainda um espaço de classe média baixa?
Enfim, no fundo é patente apontar que por cada cubículo do Master, com suas questões latentes – de desigualdades, de gênero, de frustrações, de alegrias, de tentativas de suicídio, de ausência do pai – passa um Brasil inteiro.
Assista ao trailer: