Por Sttela Vasco

Em 1957, a relação entre Charles Chaplin e os Estados Unidos já estava mais do que estremecida. Impedido de retornar ao país em 1952, após ser duramente perseguido politicamente, o cineasta ficou extremamente magoado ao receber tal notícia enquanto ainda divulgava Luzes da Ribalta (Limelight). Tal sentimento fica mais do que explícito em Um Rei em Nova York (A King in New York), de 1957, primeiro filme de Chaplin longe do solo americano – ele foi gravado no Reino Unido – e último em que atuou como protagonista.

Shahdov (Chaplin), um rei deposto, foge para os Estados Unidos para viver como exilado no país. Após ter seus bens roubados por seu primeiro-ministro, ele precisa aprender a viver com pouco dinheiro. Em meio a confusões e dificuldades para se adaptar ao novo país, Shahdov conhece um garoto cujos pais sofrem perseguição política. O encontro traz ainda mais problemas ao rei, fazendo com que ele seja obrigado a refletir sobre sua vida e buscar uma solução para seus problemas.

Apesar de se tratar de uma comédia – ou pelo menos ser assumido como parte de tal gênero – e por mais que Charlie repetisse que este não seria um filme amargo, mas engraçado, é impossível não perceber o tom de amargura que o permeia. Toda uma série de ressentimentos e mágoas com os EUA parece vir à tona durante o longa. As piadas vêm carregadas de um humor ácido, o traço ingênuo que marcou Carlitos, sua grande criação, não chega a ser tão presente nesta composição. Temos aqui um personagem mais áspero, endurecido por algumas decepções, mas que ainda consegue enfrenta-las com humor.

m04a.tif

Um Rei em Nova York é Charlie cutucando os Estados Unidos e expondo seus descontentamentos em relação ao país que lhe acolheu para, então, expulsá-lo. Mesmo sem se saber de seu histórico com o país, é possível perceber a crítica explícita que o ator/diretor faz ao estilo de vida norteamericano. O consumo e o incentivo a ele – explicitado por uma ‘publicitária’ composta apaticamente por Dawn Addams -; a obsessão pela beleza e a constante perseguição – e paranoia – relacionada a qualquer um que tivesse um pensamento ideológico minimamente diferente do julgado certo são alguns dos tópicos criticados por Chaplin durante o longa.

A grande crítica, no entanto, é facilmente relacionada com as constantes perseguições sofridas por Charlie enquanto ainda estava na terra do Tio Sam. Constantemente questionado se era comunista – suspeita que acabou por levá-lo ao exílio – Chaplin personifica sua raiva contra isso através do pequeno Rupert, um garoto filho de pais comunistas que se vê acuado pelas constantes indagações sobre ser ou não comunista. Em duas das falas mais geniais da obra, Chaplin dá sua espetada nos EUA e consegue transmitir sua mensagem de maneira clara e direta, mas permeada com humor.

Na primeira, Rupert está lendo Karl Marx quando Shahdov questiona: “você é comunista?”. Sarcástico, o garoto responde: “é preciso ser comunista para ler Karl Marx?”. Na segunda, novamente em um diálogo entre ambos, Shahdov questiona Rupert quando este se afirma comunista. “Pensei que você era contra todo o tipo de governo”, diz o rei. “Sou. Mas estou tão cansado de me perguntarem se sou isto ou aquilo. Então, se isso agrada a todo mundo, eu sou um comunista”. E aí está. Chaplin falando – mais uma vez – através de seu personagem e dando sua resposta à grande questão que o sempre perseguiu.

Cinemascop - Um Rei em NOva York2Rupert, aliás, é interpretado por Michael Chaplin, um dos filhos de Charlie com Oona Chaplin. A atuação, apesar de não ser brilhante e trazer, por exemplo, uma série de gestos exagerados e olhares perdidos por parte do garoto, consegue compor e dar força ao personagem que é um dos fios condutores da história. Rupert é, na verdade, o próprio Chaplin rebatendo as constantes acusações e se posicionando contra tudo que havia sido dito sobre ele.

A atuação de Michael, aliás, não é o único ponto imperfeito do filme. Rodado em um estúdio que não lhe pertencia, Chaplin precisou gravar o longa dentro de um prazo bem mais curto do que o seu normal – Um Rei em Nova York foi rodado em apenas 12 semanas – o que acabou por dar à obra um ritmo acelerado que não soa proposital, com alguns cortes abruptos e cenas pouco exploradas. Com mais tempo, provavelmente o cineasta teria se aprofundado ainda mais em seus personagens e retratado de uma maneira mais bem composta suas críticas.

Apesar de tê-lo deixado de interpretar muitos anos antes de conceber Um Rei em Nova York, é possível notar traços do inesquecível Carlitos em Shahdov. O sorriso ingênuo, que vez ou outra desponta, algumas piadas típicas da época em que interpretava seu personagem mais brilhante – a cena em que o rei vai a um restaurante, mas não consegue fazer o pedido e começa a gesticular é puro Vagabundo se deixando transparecer em seu criador – e algumas piadas mais sutis trazem de volta a adorável figura tão bem interpretada por Chaplin.

Há críticos que julguem Um Rei em Nova York como o pior filme da carreira de Chaplin – e com menos carga humorística também. Porém, isso soa mais como um equívoco por parte de quem se manteve no raso sobre o cineasta e não se aprofundou no complexo e estruturado mundo criado por Charlie em seus filmes. A obra, de fato, não é a melhor de sua carreira, principalmente se comparada a feitos como Tempos Modernos, O Garoto ou O Grande Ditador. Porém, resumi-la à ‘pior da carreira’ é tão superficial quanto a crítica que se tenta fazer sobre o filme.

Chaplin sempre colocou seus sentimentos e reflexões em suas obras. Com Um Rei em Nova York não poderia ser diferente. O humor está presente, mas por baixo de densas camadas de ironia e mágoa, refletindo o estado de espírito de seu criador. Quem estava acostumado à crítica ‘doce’ feita através de Carlitos, há de estranhar esse Chaplin mais seco.  No entanto, isso não tira o valor da obra e muito menos a sua importância na composição da filmografia deste que foi – e ainda é – uma das maiores figuras do cinema mundial.

Veja o trailer: