Quando o Cinemascope começou a elaborar, juntamente com o Telecine, o Especial sobre o cinema de Federico Fellini, eu me debrucei sobre um material de pesquisa que incluía, além de filmes selecionados do diretor, sua autobiografia, algumas entrevistas concedidas por ele ao longo de sua carreira, e artigos extensos que discutiam o Neorrealismo Italiano.

Foi uma enxurrada de referências que me fizeram levantar diversas questões que permanecem sem resposta: o que é fazer cinema, atualmente, no Brasil? O que representa a indústria cinematográfica, hoje, no mundo? A quantas anda, em pleno 2021 pandêmico, a experiência de ir ao cinema?

Por que mesmo depois de quase 30 anos de sua morte, Fellini continua a ser celebrado como um dos diretores mais incríveis da história do audiovisual? O que ele fez que transformou seu nome num adjetivo e tornou seu estilo algo único e inesquecível?

Sempre ouvi que, para uma obra de arte se tornar inesquecível, ela precisa dar conta de abordar temas que dizem respeito a características intrínsecas do ser humano: a morte, os ciúmes, o amor, o medo, o luto, a miséria, a exploração, a dúvida, a vingança, a vida em sociedade e por aí vai.

Mas eu me pergunto: o que faz a Arte, senão justamente tentar elaborar, questionar, cutucar todo tipo de material humano? Nesse sentido, qualquer manifestação artística teria um grande potencial de se tornar inesquecível, não?

No texto de abertura do especial, digo que a Arte surgiu numa tentativa do ser humano de dar sentido ao que não compreendia. A tudo o que lhe parecia esquisito; estranho.

Mas depois de acompanhar com gosto a carreira de um cineasta que viveu num mundo completamente diferente do meu, o mais fantástico é justamente perceber que nada em Fellini é estranho. Justamente o contrário: tudo é monumentalmente reconhecível. E talvez por isso seja tão assustador.

O menino Federico que nasceu em Rimini e viveu sua vida vendo o mundo com olhos grandes e esbugalhados tornou-se um cineasta do óbvio, porém um óbvio carregado de tinta.

Não existe um de seus filmes que coloque em pauta uma questão desconhecida pelo público. Seus personagens carregam dores e delícias genuínas, mesmo (e principalmente, eu diria) aqueles que não estão em primeiro plano: os loucos, as prostitutas, os andarilhos, os bêbados, os velhos.

Nada, em seus filmes, é uma novidade. E, no entanto, sempre é um grande acontecimento. Para ele, o mundo todo é um imenso parque de diversões: tudo pode ser fascinante e ele o sabe.

Também o sabe seu fiel amigo, companheiro de carreira e de vida, Ettore Scola. Dois grandes cineastas, grandes, grandes amigos, que viam o mundo a seu modo. Dos pés de Scola à mente brilhante de Fellini, estes compatriotas revolucionaram a estética do cinema italiano pelo simples fato de serem exímios contadores de histórias.

No ano de 2013, Ettore Scola entregou ao mundo sua última homenagem ao amigo. Que estranho chamar-se Federico é isto: uma lembrança muito emocionante, a celebração de uma amizade, um último abraço.

Durante alguns minutos, passeamos junto com a figura do narrador pelos episódios mais marcantes da vida destes dois diretores, pelos pontos em que as trajetórias se cruzam ou se separam, o trabalho deles na Imprensa Italiana, a relação com as caricaturas, os processos artísticos, os longos passeios de carro aos quais Fellini submetia seus colegas, em noites de insônia.

Somos presenteados com frases retiradas de entrevistas que Fellini concedeu a alguns programas, antes de morrer, e também com vídeos de bastidores que mostram momentos únicos de sua direção, por trás das câmeras.

E quem melhor para contar a história de Fellini do que um de seus melhores amigos? Scola conhecia Federico, mas também conhecia Fellini e soube tirar proveito de alguns de seus principais elementos artísticos, sem colocar-se de lado na estética do filme.

Somos conduzidos pelas avenidas da Roma de Fellini, por Rimini, pela Cinecittà e pelas imagens e algumas de suas mais icônicas obras de arte, e somos relembrados de um fato que costumeiramente é esquecido pela grande crítica: Fellini era um hábil mentiroso.

Talvez por isso contasse essas histórias tão bem. Talvez por isso fosse tão fácil misturar realidade e sonho, verdade e mentira: porque ele mesmo não separava uma coisa da outra – e tudo ganhava vida na frente de suas câmeras.

Fellini não acreditava na total liberdade de criação e vivia dizendo que precisava ser provocado para que a coisa toda funcionasse, para que ele desse vida às suas fugas, seus mistérios, suas esquisitices. Aos 73 anos, ele deixou este mundo, ou como Ettore coloca nas palavras do Narrador: “realizou sua última fuga”.

Aquele moleque que se encantou pelas esquisitices do teatro mambembe que apareceu da noite para o dia atrás de sua casa acabou por crescer e inaugurar um jeito único de se fazer cinema. E todas as experiências inaugurais são inesquecíveis.

“Dê-me um raio de sol”, um diretor pedia a ele. E ele ofereceu ao mundo a sua obra inteira.

Fellini se foi, mas seu cinema permanece como um presente, um alívio em meio a tanto caos que parece que sempre encontra um jeito de se instalar no mundo. Mas acima de tudo, seu legado é um lembrete: sempre é possível sonhar.

Se você quiser conhecer mais das obras de Fellini, muitas delas estão disponíveis no streaming do Telecine. Lembrando que o serviço oferece  30 primeiros dias de acesso gratuitos.

Navegue por nossos conteúdos

CONECTE-SE COM O CINEMASCOPE

Gostou desse conteúdo? Compartilhe com seus amigos que amam cinema. Aproveite e siga-nos no Facebook, Instagram, YouTube, Twitter e Spotify.

DESVENDE O MUNDO DO CINEMA

A Plataforma de Cursos do Cinemascope ajuda você a ampliar seus conhecimentos na sétima arte.