É gostoso ver como, ao longo dos anos, Fellini começa a brincar mais com os estilos.

Assistir a um filme como Ensaio de Orquestra é quase como se colocar à frente de um picadeiro de circo e acompanhar as diferentes relações de autoridade entre as figuras clownescas, que aparecem como uma maneira de refletir justamente as relações esdrúxulas – e necessárias, talvez? – que existem no mundo real.

Perceba: os filmes de Fellini começam antes mesmo de começar. Imagine só uma película que fala sobre música começar com… Barulho.

Esta relação entre música e barulho segue sendo discutida até o fim, assim como a relação entre sagrado e profano, que vai e volta diversas vezes nos atritos entre os músicos com o maestro, na relação deles com a igreja (ambiente escolhido para o ensaio) e com o mundo lá fora.

Aos poucos, as personagens vão se expandindo. Cada músico vai se exibindo e dizendo à câmera “eu sou melhor, meu instrumento é o melhor”. Esta escolha deixa evidenciada a quebra da quarta parede, e faz com que, ao mesmo tempo em que os espectadores se aproximem de tudo o que está sendo visto, eles se distanciem.

Afinal, somos lembrados de que estamos vendo algo que não existe. Não só pelo fato de estarmos num cinema – ou na sala de casa – mas também porque o diretor esgarça as relações e intensifica as reações das personagens a tal ponto que chega um momento em que tudo beira a barbárie.

Lembra um pouco o que acontece em Relatos Selvagens (Damián Szifron, 2014), principalmente no episódio antológico da festa de casamento.

Um “ensaio de orquestra” se revela, na verdade, um espelho da humanidade em que podemos perceber que as relações e reações às figuras de autoridade são o que dá brilho e graça ao filme.

Essa selvageria crua notada em determinadas ações das pessoas é uma característica que se faz presente em diversas camadas da sociedade e oferece inspiração para muitos estilos e linguagens artísticas.

A figura do Maestro, absurda em cada fio de cabelo, revela-se tirânica, mas ao mesmo tempo completamente possível. Existe essa aura de mito que envolve os grandes de cada área, não é mesmo, que tem o poder de transformar os figurões em verdadeiros tiranos.

Que o digam as pessoas que trabalharam com Lars Von Trier, conhecido por histórias completamente malucas em que o elenco tinha, inclusive, uma “cabine do desabafo” instalada no set.

Quão absurdo é cruzar com um chefe assim? Quão impossível é reconhecer no Maestro a figura de alguém com quem você já trabalhou? Seria um chefe sempre uma figura tirana, grossa e estúpida, que não se importa absolutamente com o resto do time? Quanto suportamos, sem questionar, um chefe tirânico ou uma voz de comando autoritária em prol do chamado “bem maior”?

As farpas trocadas entre os músicos vão escalonando cada vez mais, até que tudo se intensifica a tal ponto que o único lugar possível para o qual a discussão pode ir é a destruição. E é isso que acontece.

A igreja escolhida como local de ensaio começa a ruir por dentro e por fora, o sagrado (a música) acaba sendo profanado, de um jeito ou de outro, pelo que acontece entre os músicos. E o que antes era um ensaio acaba se tornando o verdadeiro caos.

Entre escombros e em meio a este caos, os músicos respondem à voz de comando do maestro. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, depois de reclamar, depois de vermos o quanto a orquestra estava saturada, eles voltam à estaca zero. O ensaio continua, ainda em meio à destruição. Ora, se não é isto que estamos fazendo de uns anos para cá, não é mesmo?

Ensaio de Orquestra é só um pretexto para falar sobre como nós, cidadãos comuns, estamos presos às circunstâncias em que vivemos. É um jeito torto e divertido de olhar para um ambiente que poderia ser considerado cheio de pompas e formalidades, e perceber que, no fundo, todo mundo é um pouco animal.

Você encontra diversos longas da carreira de Fellini disponíveis no streaming do Telecine. Os 30 primeiros dias de acesso na plataforma são gratuitos.

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