Por Verônica Petrelli
O filme Harry Potter e a Pedra Filosofal estreou em uma sexta-feira à noite, em novembro de 2001. Na segunda-feira seguinte, toda a equipe de atores e produtores estava de volta ao trabalho para filmar Harry Potter e a Câmara Secreta, o mais fiel filme de toda a saga do menino bruxo, o mais fidedigno aos livros. Antes mesmo do lançamento do filme primogênito, a pré-produção e as filmagens do segundo longa já tinham começado, junto à edição e mixagem do filme um. Segundo o diretor Chris Columbus, essa estratégia foi extremamente necessária, já que as crianças estavam crescendo muito rápido e a Warner Brothers havia marcado o lançamento do segundo filme para um ano depois. O tempo era curto. Daniel Radcliffe e Rupert Grint já estavam com as suas vozes engrossando, entrando na puberdade. Mas de acordo com Columbus, essa emenda foi bastante relevante, visto que o elenco jovem não teve tempo de se sentir esmagado por eventos de première e a equipe não pode relaxar e curtir o sucesso de Pedra Filosofal. Logo, estavam todos de volta aos estúdios.
O segundo longa da saga traz uma trama bem mais sombria e ameaçadora, devido à abertura da Câmara Secreta e petrificação dos estudantes. No entanto, é um filme que ainda possui em seu âmago toda a essência de magia dos livros, algo que se perdeu a partir de O Prisioneiro de Azkaban. Em A Câmara Secreta, temos um Harry mais amadurecido e dono de si, que fica a frente dos acontecimentos e foge da posição passiva do primeiro longa. Ademais, diversos cenários novos são apresentados, todos estonteantes: a Toca, a Sala Comunal da Sonserina, a sala de Defesa Contra as Artes das Trevas, o escritório do Professor Dumbledore e, é claro, a inigualável Câmara Secreta, um dos sets mais caprichosamente construídos de toda a saga.
Já começamos o filme com a apresentação de uma figura caricata, que se tornaria um dos personagens-chave ao longo de toda a saga: Dobby, o elfo doméstico, dublado pelo ator britânico Toby Jones. Sem dúvida, uma das mais sábias escolhas da equipe de direção de arte foi ter optado por criar Dobby digitalmente. Ele foi o primeiro personagem da série totalmente gerado por computador. Nas cenas em que Harry aparece ao lado de Dobby, o ator Daniel Radcliffe está, na verdade, interagindo com uma bola de tênis espetada em uma vareta. Contudo, a oficina de criação do designer Nick Dudman também desenvolveu um boneco do Dobby em tamanho real, feito com silício e um esqueleto completo por dentro. Ele serviu para dar ao cameraman responsável pela iluminação um ponto de referência para as cenas.
Logo no início, também somos introduzidos a um importante objeto da saga potteriana: Rony e seus irmãos, Fred e Jorge, salvam Harry de sua prisão domiciliar com um Ford Anglia voador. O automóvel foi escolhido por J.K. Rowling como um tributo ao primeiro carro que seu amigo de escola possuía. A equipe de objetos de cena teve que percorrer o país inteiro atrás desse modelo específico, e muitos foram encontrados em ferro velhos. Porém, o Ford Anglia ganhou o “noticiário dos trouxas” quando, em 2005, a imprensa britânica noticiou que o carro havia sido roubado do estúdio e encontrado em um castelo em ruínas na Cornualha. Na verdade, o automóvel roubado era apenas um dos vários utilizados nas filmagens. Ao todo, foram 16 Anglias, todos diferentemente adaptados para as mais diversas cenas.
Após a viagem de Harry e dos Weasley pelo Pó de Flu (quando o pequeno bruxo se desvia de sua rota original e acaba caindo na Travessa do Tranco), há uma cena na loja de livros Floreios e Borrões onde somos apresentados a dois personagens extremamente marcantes: Gilderoy Lockhart e Lúcio Malfoy. A autora J.K. Rowling afirma que o professor Lockhart foi um dos únicos personagens dos livros baseado deliberadamente em uma pessoa real, que era ainda pior que o personagem, totalmente extravagante e contador de mentiras. Vários atores fizeram o teste para conseguir o papel, mas Kenneth Branagh foi de longe o melhor de todos, resgatando com perfeição a essência do personagem. A equipe de produção fez um grande esforço para criar a imagem do supervaidoso Lockhart, cuidando dos detalhes de figurino e maquiagem e dos assessórios específicos, como a reluzente dentadura e as perucas.
A outra importante figura, Lúcio Malfoy, que se tornaria um membro recorrente até o final da saga, foi interpretada brilhantemente por Jason Isaacs. O ator foi um dos que mais se preocupou em entender o âmago do personagem que iria encenar, questionando a equipe a todo o momento e contribuindo com ideias enriquecedoras de figurino. De acordo com Chris Columbus, Jason sempre foi o ator perfeito para o papel. O próprio Isaacs sugeriu a utilização de uma longa peruca loira (que lhe dava ares de superioridade) e de uma bengala em formato de cobra, que se transformava em sua varinha. O ator cooperou brilhantemente para a concepção e o enriquecimento de seu personagem.
Na obra literária, no momento em que Lúcio Malfoy e Arthur Weasley (pai de Rony) se encontram na Floreios e Borrões, algo extremamente divertido acontece: os dois entram em uma briga de socos e pontapés, gerando um grande rebuliço na loja de livros. Essa cena infelizmente foi ignorada pela equipe de filmagem.
Logo após a passagem no Beco Diagonal e a interceptação da Plataforma de Hogwarts, Harry e Rony roubam o Ford Anglia voador e, em um descuido, acabam caindo no Salgueiro Lutador. Para compor a grande árvore lutadora, a equipe de arte optou por galhos cobertos por uma casca moldada de borracha e operados mecanicamente. Os movimentos da árvore eram controlados por meio de uma versão em miniatura que possuía acionadores eletrônicos. Esses acionadores transmitiam um sinal para o salgueiro em tamanho real, fazendo-o reproduzir a ação solicitada. Tal mecanismo chama-se Waldo (leva o nome do personagem que projetou algo semelhante em um conto de Robert Heinlein da década de 40).
Além do clima de suspense ao longo da trama por não sabermos quem é o verdadeiro herdeiro de Slytherin (Seria Draco? Ou Harry? Ou mesmo Hagrid?), há os inigualáveis e bem dosados momentos cômicos. A cena do Berrador da Sra. Weasley, ecoando em meio ao Salão Principal, e dos Diabretes da Cornualha, que aparecem na sala de Lockhart e são novamente resgatados em Relíquias da Morte Parte 2, são muito bem colocadas e extremamente bem feitas, com primorosos efeitos especiais. Destaque também para o trecho em que Rony começa a cuspir lesmas nos jardins de Hogwarts, consequência de um feitiço que saiu pela culatra.
Outra cena muito curiosa que também foi extinta da adaptação cinematográfica é a Festa do Aniversário de Morte de Nick Quase Sem Cabeça, onde o trio principal é obrigado a participar de uma comemoração lotada de fantasmas e desprovida de comida para humanos. Saindo da festa, Harry, Rony e Hermione deparam-se com Madame Nor-r-ra petrificada e, a partir daí, vários ataques acontecem: Colin Creevey, Justino Finch-Fletchley etc. Nessas cenas, são utilizados bonecos extremamente realistas chamados life-casts. Cada um tem cor de cabelo e olhos combinando com cada fio e cada cílio colocados em sua pele artificial. O processo de life-casting começa com o ator sendo coberto na cabeça e nos ombros por alginato odontológico, uma substância que em poucos minutos ganha a textura de borracha. É um método antigo, porém bastante eficaz, pois serve para gerar bonecos, modelar maquiagens protéticas, fazer máscaras para dublês ou propiciar uma referência para os animadores digitais, que podem escaneá-lo com um laser para gerar imagens em 3D. Emma Watson afirma que seu boneco ficou tão perfeito que até a sua mãe assustou-se com o resultado.
Um dos pontos altos de A Câmara Secreta, sem dúvida, é o trecho da Poção Polissuco. É a primeira vez que somos apresentados a essa poção, que será recorrente durante toda a saga potteriana. Os efeitos especiais utilizados no momento em que Harry está se transformando no desajeitado Goyle, em frente ao espelho, são sensacionais. Destaque também para as cenas nas quais Potter pratica, mesmo que inconscientemente, a ofidioglossia. A língua das cobras ficou extremamente realista e assustadora, principalmente pelo fato de a equipe de filmagem ter contratado um linguista para criar os fonemas do idioma ofidioglota.
Após a assustadora conversa com o Diário de Tom Riddle e a petrificação de Hermione, Harry e Rony decidem ir à cabana de Hagrid e lá são induzidos a visitar o covil de Aragogue, a aranha gigante. Essa cena preocupou bastante os idealizadores do filme, que tinham a intenção de criar um ambiente totalmente assustador, mas ao mesmo tempo real. Afinal, evitar intervenções excessivas de efeitos especiais continuou sendo uma meta a ser seguida no segundo longa da saga. As hordas de aranhas pequenas foram geradas por computador, mas a matriarca da família (Aragogue) é uma figura animatrônica. Até a floresta utilizada para a filmagem é real. O ator Julian Glover, da Royal Shakespeare Company, foi o dublador do aracnídeo gigante, e a gravação de sua voz era colocada no set durante as filmagens.
Depois de descobrirem a verdade sobre Murta-Que-Geme, Harry e Rony decidem entrar na Câmara Secreta, templo de Salazar Slytherin. Esse foi o cenário mais perfeito e bem construído de toda a série cinematográfica, o mais belamente concebido, que superou todas as expectativas dos fãs dos livros. O set da Câmara Secreta possui 75 m por 35 m, maior até do que o próprio Salão Principal. O uso que o Basilisco fazia de canos d’água inspirou o diretor de arte, Stuart Craig, a realizar as entradas e saídas da Câmara como uma série de túneis. Para buscar referências, a equipe entrou em bueiros no coração de Londres, fazendo um tour pelo sistema de esgoto vitoriano da cidade. O labirinto de túneis proporcionou um cenário cheio de suspense para o perigoso jogo de esconde-esconde entre Harry e o Basilisco. Além disso, a monumental cabeça entalhada de Salazar Slytherin e o primoroso corredor de cobras boquiabertas dão grandiosidade e legitimidade ao ambiente (um verdadeiro templo sonserino).
A assustadora porta circular que dá entrada à Câmara, com seu complexo arranjo de fechaduras de cobras, também foi um excelente trunfo da equipe de arte, que transformou conceitos visuais extraordinários em realidade funcional. Ela foi concebida pelo engenheiro Mark Bullimore, o mesmo profissional que criou os mecanismos das portas dos cofres de Harry e de Bellatrix no banco Gringotes. O resultado da mecânica da porta circular é o exemplo de uma concepção artística tradicional e eficaz, que hoje é infelizmente substituída por efeitos de computador. Esse foi um dos objetos mais engenhosos e bem colocados ao longo do filme.
Com relação ao Basilisco, foi criado um modelo animatrônico de sua cabeça, de 7,5 metros e 1,5 tonelada, com pele de espuma de látex e interior de escamas de alumínio. Esse modelo serviu para as cenas em que o personagem principal luta contra o monstro e finalmente perfura a sua mandíbula com a espada. Já o restante de seu corpo foi concebido por computação gráfica.
Os efeitos especiais também passaram longe de Fawkes, a fênix de Dumbledore, pássaro grandioso e impetuoso que auxilia Harry durante a batalha contra o Basilisco. Além de possuir a música temática mais bonita de toda a trilha sonora (créditos para a genialidade do compositor John Williams), a fênix foi construída com tantos detalhes que alguns atores até confundiram o modelo animatrônico com um pássaro de verdade. Para fazê-lo, a equipe utilizou uma combinação de penas naturais (retiradas de faisões e outras aves de caça) e penas tingidas. A inspiração veio de representações da mitologia clássica e observações de pássaros reais. Para a Fawkes gloriosa e triunfante do final do filme, a equipe tomou como base a águia marinha, uma magnífica ave de caça considerada a espécie mais antiga do mundo. O pássaro áudio-animatrônico que aparece pela primeira vez no poleiro do escritório de Dumbledore é um mecanismo altamente complexo com cerca de dez controladores. Além de piscar, possui todos os tipos de pequenas expressões faciais. As lágrimas curativas da fênix, que se acumulam e escorrem dos seus olhos dentro da Câmara Secreta, são lágrimas “de verdade”.
Em uma das últimas cenas, no escritório de Dumbledore, há um momento improvisado entre Jason Isaacs e Daniel Radcliffe. Com o intuito de testar o ator mirim, Isaacs soltou a seguinte fala: “Esperamos que o Sr. Potter sempre esteja presente para salvar o dia”. Sem se intimidar, Radcliffe respondeu com convicção: “Não se preocupe. Eu vou estar”. O improviso ficou tão bem colocado que o diretor decidiu incluir esse trecho na edição final.
É também nesse momento que testemunhamos um dos diálogos mais bonitos de toda a série potteriana. Ao dividir com Dumbledore a sua aflição por ser parecido com Tom Riddle e ter sido escalado para fazer parte da Sonserina, Harry escuta um lindo ensinamento do diretor de Hogwarts: “Não são nossas habilidades que mostram o que realmente somos. São nossas escolhas”. No longa, a frase foi proferida pelo ator Richard Harris, falecido em 03 de novembro de 2002, aos 72 anos. A perda de Harris foi lamentável e inestimável para a saga. De acordo com a maioria dos fãs, ele sempre foi o perfeito Dumbledore, que compreendeu o âmago do personagem e soube trazer suas características mais especiais para a tela.
Harry Potter e a Câmara Secreta é um filme amadurecido e mágico, sombrio e cômico, profundo e intenso. De todas as adaptações, é a mais fiel ao livro, agradando legiões de fãs. É uma pena que a saga tenha perdido um gênio como Chris Columbus, que optou for não ficar a frente da direção de O Prisioneiro de Azkaban. No entanto, todas essas decisões foram necessárias para a evolução e o desprendimento da série, que se tornou cada vez mais personalizada e independente.
Harry Potter e a Câmara Secreta foi lançado nos cinemas em novembro de 2002. Recebeu três indicações ao BAFTA e concorreu no MTV Movie Awards, na categoria Melhor Interpretação Virtual (Dobby).