Imagine o seguinte contexto: você é estrangeiro e pouco sabe a respeito do Brasil. Daí resolve assistir a um documentário em que pessoas contam suas próprias histórias de vida a um entrevistador e, de repente, são trocadas por outras que entram em cena e dão continuidade àquele testemunho anterior, sem nenhum aviso. Mudam-se as caras, mas os discursos seguem. E seguem sempre convincentes. Tudo isso em um palco de teatro. Confuso saber quem é quem, não? O que é real, o que é atuação?
Parece que uma possível resposta dada por Jogo de cena (2007) é que esses dois âmbitos jamais podem ser dissociados. Selecionar palavras, pô-las em ordem, elaborar frases e constituir sentidos são gestos que se dão como construções narrativas, prenhes da intenção de desenhar a própria imagem em relação às suas expectativas e o que se pressupõe ser a expectativa dos outros. Assim, todo discurso, por mais cimentado que esteja em pavimentos da suposta realidade, se deixa infiltrar por fontes da criação ficcional. A minha subjetividade não é uma instância fechada e natural, mas se apropria e reinventa a partir de palavras e experiências alheias.
Tá. Mas é possível combinar todas essas considerações abstratas com um filme documentário que se concretiza a partir de entrevistas? Jogo de cena abriu esse curso, talvez navegado com maestria até hoje somente por ele mesmo.
Em um texto de 2009, o crítico Jean-Claude Bernadet revelava espanto com esse documentário, a ponto de compará-lo com a obra emblemática da radicalização da literatura moderna:
“O Ulysses do filme documentário já explodiu. Seu título é: Jogo de cena, que não deixou muitos sobreviventes. Penso que é necessário perceber as dimensões de Jogo de cena. Não é um filme importante e transformador no quadro do cinema documentário brasileiro, é um abalo sísmico de 7 graus na escala Richter no cinema documentário em geral, ou, mais precisamente, no documentário baseado na fala. Jogo de cena é uma explosão transformadora da magnitude que tiveram no passado filmes de Eisenstein ou Godard.”
O mesmo crítico, em uma posterior postagem em seu blog, se mostrava ainda enredado na novidade daquele documentário:
“Jogo de cena põe em dúvida todos os filmes documentários baseados na fala como discurso da subjetividade e no relato de histórias de vida. Põe em dúvida a relação entre o corpo falante e a fala da subjetividade (quem emite esta fala? essa fala fala do quê?). Põe em dúvida a relação entre a fala e a subjetividade. […] Filmes de que participei, gravados antes de Jogo de cena, me parecem hoje pueris.”
Eduardo Coutinho sempre preferiu chamar seus entrevistados de personagens. Consciente do grau de invenção de identidade(s) que qualquer ser humano forja para si, principalmente diante de uma câmera, o diretor reconhecia que a habilidade de narrar, matéria principal de seus documentários, não se confundia com a veracidade do relato. Isso não implica pôr em suspeição a índole das pessoas. Por mais que se busque um relato verídico, a memória traz um quinhão de falseamento. O próprio tipo de documentário conduzido por Coutinho nunca se pautou no conceito de verdade. O que vale é a maneira como se conta. Quem vai dizer que não é verdadeira a dor que as atrizes fingem sentir em Jogo de cena? Ou antes: O Jogo de cena está somente nas falas das atrizes? Aliás, quem é ou não atriz ali?
Sim, há somente atrizes ou personagens femininas no filme. Isso já estava definido na pré-produção do filme em que se utilizou um recurso explorado por Eduardo Coutinho em filmes posteriores: o convite. Estampado em alguns veículos de comunicação da capital carioca, o texto dizia: “Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias pra contar e quer participar de um filme documentário, procure-nos.”
O primeiro depoimento é um indício da motivação desse critério. Mary Sheila conta sua história pessoal de como passou a integrar o grupo teatral Nós do Morro. Sua personagem deixa o papel de atriz transbordar quando Coutinho lhe pergunta sobre o trabalho atual e lhe pede uma cena. Ela responde que faz Joana, a Medeia da peça Gota d’água, de Chico Buarque, e oferece um trecho da forte cena em que a personagem, abandonada pelo marido Jasão, assassina os filhos.
É a primeira gota de um mar salgado de outras histórias que variam sobre os mesmos temas da maternidade e da ausência da figura do pai. Não quero entrar em detalhes das histórias, que valem mesmo a partir da palavra encarnada de quem as viveu pela experiência ou pela apropriação criativa. De certo modo, é tudo verdade, seja contada por figuras que nunca vimos antes ou por personas como Andréa Beltrão, Marília Pêra ou Fernanda Torres. Todas as personagens lidam com o drama de estarem, em tantas ocasiões, sozinhas, e não terem outra alternativa senão prosseguir. “Deus é bom, mas não comigo”, uma das personagens chega a dizer. A corda que ata e irmana as entrevistadas, atrizes ou não, evidencia a estrutura monoparental de um imenso país onde muitos pais poderiam atender por Jasão.
Essa corda, a propósito, enlaça ainda diversos filmes de Coutinho, nos quais a mesma fratura social resta exposta. Desde Cabra marcado para morrer (1984), com Elizabeth Teixeira, até suas Últimas conversas (2014), com adolescentes escolares, vemos como mudam-se os corpos, as vozes e até algumas expressões, mas permanecem os discursos a respeito do deserto paterno no Brasil. Diferentemente do que fora no mito de Medeia, entretanto, esse laço não aponta para a morte materna e dos filhos, mas para reinvenções de cenas reais repletas de vitalidade.
Assista ao documentário completo: