Por Sttela Vasco

*** O texto pode conter spoilers ***

O que o ser humano precisa para sentir-se “em casa”? O que é necessário para que deixemos de buscar o que está além e nos contentemos com o que já possuímos? É a partir dessa premissa que o longa  A Tartaruga Vermelha (La Tortue Rouge) nasceu. Extremamente aclamado no Festival de Cannes de 2016, onde ganhou o prêmio especial do júri na mostra Um Certo Olhar, o longa, dirigido pelo holandês Michael Dubok de Wit (vencedor do Oscar em 2000 pelo curta de animação Pai e Filha) traz questionamentos sobre o que é essencial para a vida – ou ao menos para uma existência feliz – e retrata de maneira delicada e bela o inquebrável ciclo da vida.

Após o barco onde estava naufragar, um homem vai parar em uma ilha deserta. Buscando meios de se manter, ele começa a buscar meios de sair do local, construindo uma jangada para isso. Porém, sempre que ela entra no mar, uma enorme tartaruga vermelha a destrói, obrigando o homem a retornar para a ilha. Aos poucos, um curioso relacionamento surge entre ambos.

Desde As Memórias de Marnie (Omoide no Marnie), de Hiromasa Yonebayashi, o Studio Ghibli não colocava mais nenhuma produção no mercado. Com um hiato anunciado em agosto de 2014, foi uma surpresa feliz quando houve a confirmação de que uma nova produção estava a caminho. Em formato de coprodução, contando com Isao Takahata, um dos criadores do estúdio, entre os nomes envolvidos, o longa traz a identidade e a sutileza tão conhecidas nas obras do Ghibli. A análise minuciosa e real sobre a vida, retratando até mesmo o mais banal do cotidiano humano, características sempre tão presentes nos longas do estúdio japonês, também estão lá.

A Tartaruga Vermelha é uma obra que cativa lentamente e se desenvolve aos poucos. Sem falas, elas faz com que o espectador se envolva com tudo que está conectado à realidade desse homem: o oceano, as palmeiras e coqueiros, o pequeno rio dentro da ilha, o vento. E é por meio desses elementos que ele começa a trazer dois questionamentos. O primeiro, sobre a busca do ser humano por sair de situações que lhe roubam a liberdade e a segunda sobre o que é preciso para ser feliz. Ao se ver preso na ilha, o primeiro intuito do homem é, naturalmente, escapar. Ele busca saídas e encontra na construção de uma jangada uma delas, porém, sempre que a coloca no mar, uma misteriosa criatura a destrói, o levando de volta para ilha.

Tal situação serve muito como metáfora para a vida como um todo. Às vezes queremos e buscamos algo, mas simplesmente não acontece. Uma aparente força maior nos conduz de volta para a situação – ou lugar – do qual queremos fugir. E como se contentar? Como aceitar que aquilo que desejamos pode não se concretizar? O tempo todo o homem sonha com essa fuga, encontra, em seu inconsciente, um meio mágico de escapar. É nesse momento que o longa se volta à questão do pertencimento. Mesmo quando tentando fugir, todos queremos sair de uma situação para outra, a ideal, para sentir que pertencemos. A algo, a alguém, a algum lugar. O que faria um homem se sentir pertencente a uma ilha deserta e solitária?

É aí que a dinâmica com a tartaruga surge. Primeiro buscando combatê-la, e vendo nela a razão do fracasso para conquistar seu ideal, ele busca destruí-la, porém, aos poucos, ela se torna uma companheira e sinônimo do que lhe é familiar. E é justamente essa o caminho que o filme percorre para dar a esse homem a sensação de que aquele lugar é sua casa: uma família. A tartaruga é o ponto de partida para uma mudança e é também uma reflexão sobre a vida. De uma maneira poética e quase mágica, ele encontra naquele inóspito lugar um motivo para viver. Essa interação com a natureza está presente durante toda a obra. Por vezes se revoltando, por outras buscando abrigo, o homem está inevitavelmente em contato – e à mercê – dela. Algo que não é preciso estar preso em uma ilha para saber.

Indicado ao Oscar de Melhor Animação em 2017, o longa se distancia de seus concorrentes justamente por transmitir sua mensagem sem necessariamente precisar dizê-la. É um filme sobre amor, sobre a existência, sobre a natureza e sua complexa relação com o homem e sobre a vida como um todo e, ao mesmo tempo, é sobre aquilo que o espectador compreender ao vê-lo. Não há uma interpretação certa ou definitiva. Está tudo ali, no olhar dos personagens, nos ruídos e nos detalhes. O que eles dizem varia de acordo com a percepção de quem o vê.

Com um roteiro que à primeira vista parece simples, A Tartaruga Vermelha é uma daquelas obras que se constrói nos detalhes e lentamente. Ela usa o que há de mais sutil e essencial na existência humana para contar sua história. Não se trata de uma animação espalhafatosa, que tem como mote impressionar o espectador, não. O filme, na verdade, é uma reflexão sobre o que realmente precisamos para alcançarmos a felicidade. Não são necessários diálogos ou frases de efeito, tudo que se precisa saber e compreender sobre a história está ali. Assim como a vida, basta observar com atenção.

A Tartaruga VermelhaA Tartaruga Vermelha (La Tortue Rouge)

Direção: Michael Dudok de Wit

Roteiro: Michael Dudok de Wit; Pascale Ferran

Gênero: Animação, Fantasia

Nacionalidade:  França, Bélgica, Japão

 

 

 

 

Veja o trailer: