O cineasta mexicano Alfonso Cuarón não apenas sempre nutriu um senso ambicioso ao conceber suas narrativas (como em Gravidade Filhos da Esperança), como também estampa de maneira clara uma sensibilidade bastante característica e autoral (comprovada até mesmo em filmes de franquia, como o seu Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban).

Com certeza se trata de um diretor bastante especial e que aqui em seu novo trabalho, Roma, alia uma história muito mais pessoal e realista do que seus trabalhos anteriores a seu olhar bastante delicado que consegue criar um microcosmos que não empalidecem diante de seus outros trabalhos.

Se anteriormente Cuarón estabeleceu toda uma narrativa do humano contra a natureza (espaço) ao evocar com planos elaboradíssimos e efeitos especiais impressionantes em Gravidade, aqui a cosmologia da história se dá das maiores banalidades possíveis. Ao iniciar o filme com um chão tomado pela água que escorre para limpar a garagem, por exemplo, vemos que serão desses planos e gestos que o cineasta tecerá esse universo e dará suas simbologias.

Em vez de vermos os percalços de uma astronauta voltando para a Terra, agora se trata da história de uma empregada doméstica de uma família abastada no México dos anos 1970. Acompanhamos inicialmente a rotina de Cleo (Aparicio) na mansão de senhora Sofia (Tavira) e do doutor Antonio (Grediaga), como o carinho que mantêm pelos quatros filhos desse casal e sua vida fora da mansão, ao sair com um interesse amoroso ou uma amiga.

O diretor concebe de maneira muito direta e natural um paralelo interessante entre estudo de personagem e um retrato histórico dos atritos sociais e políticos naquele período no México. Cuáron investe de maneira imersiva não apenas no drama principal que Cleo vive durante a história, mas torna subjacente a crise familiar que surge na casa.

Ambas as premissas são dramas que dimensionam as classes sociais das personagens, deixando claro como a realidade de Cleo como empregada é totalmente diferente de Sofia, que é a patroa. Mas as duas estampam o machismo que perdura até hoje e o desapego dos homens de lidarem frontalmente com seus frutos e responsabilidades. Isso é criado de maneira muito sutil por Cuarón, como na cena do hospital onde Antonio já insinua que não poderá ficar com uma personagem para ajudá-la, mas uma enfermeira dá permissão para ele ficar, mas mesmo assim ele não permanece.

O filme todo é permeado dessas presenças mundanas que traduzem um universo de significados, como os constantes cocôs de cachorro na garagem ou a presença pomposa do carro de Antonio em planos detalhes ao chegar na casa.  Curiosamente, Cuarón parece aproximar sua câmera sempre nesses detalhes que tratam da realidade e afasta-la em momentos de grande impacto e que pediriam o contrário, como a cena onde Cleo está numa loja em meio a um protesto de tons violentos. Porém, esse enfoque distanciado traduz a inerência dos personagens nessas estruturas sociais e suas incapacidades de se locomoverem diante da maré que é o contexto social ali.

Portanto, Roma se torna um relato bastante melancólico, já que Cleo é uma protagonista com anseios e desejos, que avista uma perspectiva melhor em sua vida, mas o meio em que convive (seja a casa ou mesmo a sociedade) a impedem disso. Em uma das sequências mais fortes e impactantes da cinebiografia de Cuarón, vemos Cleo deitada em paralelo a algo que simbolizava sua maior alegria e a maneira direta (em um único plano) que o diretor enfoca isso torna um momento de partir o coração.

Claro que as adversidades vividas pro Cleo não seriam tão marcantes se não fossem pelo belíssimo trabalho de Yalitza Aparicio, que se houver justiça no mundo será lembrada em todas as premiações possíveis. Ao encarnar uma protagonista que parece corresponder ao sonho de patrões ricos e cínicos por ser solícita e introvertida, ainda transparece um mar de emoções e aspiração. Seja o momento em que deita com um dos filhos de Sofia sob o sol, ou quando espera ansiosa com uma amiga por um rapaz, é ao mesmo tempo belo e desesperador que Cleo tenha tantas vontades, mas que não inibidas de se cumprirem.

Aparicio sabe muito bem transparecer a melancolia de cuidar da casa e das crianças daquela família, mas também nunca de maneira penosa, já que demonstra ter afeto pelas pessoas ali. E sua empatia pela situação de Sofia e posteriormente a dela por Cleo depois da marcante sequência final, se dá por viverem dramas semelhantes, em contextos sociais muito opostos. E é revelador que Cleo, alguém de classe bem mais baixa, tenha maior facilidade em ter identificação com alguém do que Sofia, alguém de classe mais alta e condicionada a apenas atender as vontades próprias e da família na bolha de sua mansão.

Embora ressalte o período histórico do filme numa magnífica fotografia em preto-e-branco dirigida pelo próprio Cuarón (e lhe renderá ao menos um Oscar na categoria de fotografia), as relações e dinâmicas ali presentes são, infelizmente, bastante atuais. Há ainda esse gritante distanciamento de classes que perduram para oprimir os mais desprovidos, como também o machismo silencioso, da permissividade do homem de abandonar suas responsabilidades, enquanto a mulher, se não assumir, é imediatamente atacada.

No final das contas, Roma observa com melancolia a realidade de uma família, que representa facilmente todas as famílias de classe alta e a disposição dos ricos com seus empregados, mas com breves momentos de alegria que servem de frescor no mundo que insiste afrontar Cleo. Ao vemos seu ato na sequência final, constamos o amor incondicional dela por aquelas crianças, mas pensando em retrospecto, nasceu de um contexto cheio de desigualdade e opressão. Assim, tornando o gesto de Cleo num desesperado esforço de reviver o que sonhou, mas a vida lhe tirou.

Dosando bem sua costumeira sensibilidade e sua ambição em representar narrativas de grande escopo, Cuarón encontra no mundo de Cleo um universo inteiro a ser explorado e ao imergir aqui, resulta em mais uma constatação de se tratar de um dos melhores diretores em atividade atualmente, ao realizar um dos melhores filmes desse ano.

*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Roma

Ano: 2018
Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón
Elenco principal: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta , Marcos Graf, Daniela Demesa
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: México, EUA

Avaliação Geral: 5,0