De que modo o cinema pode atualizar, por meio de sua linguagem inventiva, questões do passado que mesmo distantes, parecem ecoar em nossos ouvidos como sirenes alarmantes?

Torquato Neto – Todas as Horas do Fim é uma obra cujo aspecto estético, ético e político ultrapassa a tela do cinema e salta em nossa direção nos convidando a renunciar a passividade apática a favor da ação; Ação Tropicalista.

O documentário dirigido por Eduardo Ades e Marcus Fernando é um filme que convoca perguntas do passado, atualizando-as de um modo extraordinário na medida em que pensa essas questões visando uma reflexão contemporânea; se levarmos em consideração o atual cenário político brasileiro e as consonâncias com a ditadura militar.

Torquato Neto foi um artista, poeta, jornalista, letrista, músico e expoente da Tropicália, movimento cultural brasileiro da década de 60. O documentário revive por meio de documentos, arquivos pessoais, fotografias do artista os diferentes momentos de sua vida até o seu suicídio aos 28 anos de idade. De um modo avesso, o documentário começa pelo final, ou seja, somos apresentados primeiro a morte do artista para depois, vivermos sua história. Uma história repleta de altos e baixos, de conflitos existenciais, de amor, de produção intelectual. Um artista que se acomodava tão bem no limiar entre o sensível e o racional, demonstrando a impossibilidade de separação dessas duas categorias.

A Tropicália foi um movimento de ruptura na arte brasileira em que um processo harmonioso colocou em sintonia as mais diversas tendências artísticas, do teatro às artes plásticas, da música ao cinema. Um projeto universal que priorizava a liberdade radical da criação e um fazer artístico comprometido e de caráter nacional. Resgatando o emblemático texto de Oswald de Andrade “Manifesto Antropófago” de 1928 (Só a Antropofagia nos Une, Socialmente, Economicamente e Filosoficamente) os tropicalistas tinham sede de canibais, devorando os aspectos mais díspares – tanto da nossa cultura, como da cultura do colonizador – para então, digeri-los e ressignificá-los.

Nessa perspectiva, o documentário revela Torquato Neto envolvido na efervescência cotidiana de constante ruptura em diálogo com outros artistas que marcaram e compunham a linha de frente do movimento Tropicalista. No decorrer do documentário figuras emblemáticas entregam depoimentos contextualizando a prática do artista em relação ao movimento vanguardista. Convivemos com ricos depoimentos de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Wally Salomão, Tom Zé, bem como imagens do cinema de Glauber Rocha e a arte revolucionária de Hélio Oiticica, isso para evidenciar alguns dos inúmeros nomes que compõe o documentário. Ainda, os depoimentos dos poetas e irmãos paulistas Haroldo e Augusto de Campos e o conceito de Geleia Geral enunciado pelo poeta Décio Pignatari dão maior complexidade ao filme trazendo a atmosfera de intenso debate  político/cultural brasileiro em convergência com as diferentes expressões artísticas em ascensão.

A narração dos poemas e escritos de Torquato Neto são realizadas de um modo exemplar pelo ator Jesuíta Barbosa, e, principalmente, a leitura das correspondências enviadas a Hélio Oiticica (enquanto ambos estavam em exílio) trazem para o filme as frustrações, angústias e medos que cercavam a vida de Torquato Neto.

O documentário é preciso em sua montagem, isto é, compõe texto e imagem em permanente relação, de um modo dinâmico, escapando da monotonia que aparece no gênero com frequência. Além disso, a infinita gama de documentos pessoas, relatos, histórias que penetram na vida do artista dão profundidade às sequências do longa, excitando o espectador a buscar maiores informações a respeito do momento histórico e até do próprio conteúdo biográfico do artista.

Um filme tropicalista, completamente atual e belíssimo em seu modo de narrar. É uma obra que demonstra a maestria dos diretores em compor e organizar os relatos, explorando com enorme paixão um momento tão especial da nossa cultura e que nunca foi tão necessário revivê-lo como nos dias de hoje.

Torquato Neto – Todas as Horas do Fim

 

Ano: 2017
Direção: Eduardo Ades, Marcus Fernando
Roteiro: Eduardo Ades, Marcus Fernando
Elenco principal: Torquato Neto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé
Gênero: ​Documentário
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: