Por Joyce Pais

 “A primeira vez que a vi em carne e osso, fui arrebatado como por uma aparição de conto de fadas…Há algo extremamente vivo e luminoso nela, uma inteligência. É sua personalidade, um olhar, algo muito sutil, muito intenso, que desaparece rapidamente para reaparecer de novo”

Henri Cartier-Bresson

Desajustados

Inspirados no andamento da relação amorosa do casal que era alvo de holofotes por onde passava, Arthur Miller escreveu o roteiro de Os Desajustados (The Misfits;1961) especialmente para sua mulher. O trabalho objetivava ser perfeito e apresentar uma nova Marilyn, apagar a publicidade do passado e mostrar uma imagem de anjo da vida americana, já que “Marilyn Monroe era o último dos mitos a florescer na longa noite do sonho americano” (MAILER, 1973, p.2).

A produção de Os Desajustados (o filme serviu de inspiração para o nome da banda Misfits, criadores do gênero Horror Punk) foi marcada por diversas turbulências, as quais afetaram diretamente o desenvolvimento das gravações e das relações entre os profissionais envolvidos no trabalho. Havia um clima de grande expectativa em torno do projeto, e isso de deveu por fatores como, a volta de Miller para a dramaturgia; personalidades como John Huston na direção; Clark Gable, Montgomery Clift e Eli Wallach no elenco.

DesajustadosInserida em uma narrativa masculina, Marilyn buscou conquistar espaço no andamento da produção, exemplo disso foi a tentativa de destaque mostrando o seio em uma cena com Gable, cena que posteriormente foi cortada. A dualidade vida pessoal/profissional afetava de maneira decisiva o desempenho da atriz que, no final, assistiu à canonização de Clark Gable (o que deveria, em tese, ter acontecido com ela) e ao fim do seu casamento com Miller, devido ao desgaste emocional sofrido neste período.

A história concebida por Miller foi inspirada nas pessoas que conheceu em Nevada, enquanto Marilyn filmava Nunca Fui Santa. Tentou construir um papel que se afastasse dos que Marilyn costumava interpretar – uma mulher glamourosa, ingênua, frágil e encantadora de homens.

Ao se divorciar em Nevada pra poder se casar com Marilyn, Miller conheceu esse lugar árido habitado por ‘misfits’, indivíduos desajustados, á margem da sociedade, que lá chegaram para se divorciar com rapidez e que não foram mais embora, – um mundo de pessoas perdidas, isoladas, inadaptadas, com dificuldade para se comunicar. “Quando a gente chega em Nevada, abandona tudo o que tem e que define a pessoa, a preocupação com a hora,  sotaque…”, disse, certa vez.

O filme conta a história de Roslyn Taber (Marilyn Monroe), uma mulher recém-divorciada que está em Reno, Nevada, deprimida. Ela é sustentada por Isabelle Steers (Thelma Ritter), uma senhora hoteleira “divorciadora” acostumada às angústias de mulheres nessa situação. É nesse contexto que, por acaso, Roselyn conhece os caubóis Guido (Eli Wallach), Gay Langland (Clark Gable) e, posteriormente, Perce Howland (Montgomery Clift). Instalam-se na casa abandonada em que Guido vivia com sua mulher antes desta falecer. Sem dinheiro, Perce se junta ao grupo em um rodeio e Guido conta a Gay que ao sobrevoar uma região próxima, ele vira cerca de quinze cavalos selvagens Mustang. Dessa forma, eles tem a ideia de caçá-los e vendê-los aos abatedouros para servirem de alimento aos cães. Nesse contexto, a melancolia e o vazio da vida destes personagens ficam evidentes à medida que cada um expõe suas fragilidades e cicatrizes.

Desajustados Roslyn se abala e sofre pela dor alheia, sobretudo com os cavalos selvagens prestes a serem caçados pelo trio, que “contemplam uma estrela brilhando no céu: sua luz é tão intensa é a de uma estrela já morta”, numa metáfora perfeita entre Marilyn e sua personagem.

Em dado momento Gay diz: “Você é magnífica, é quase uma honra estar com você, estou maravilhado. Por que está tão triste? Nunca conheci alguém tão triste como você!”. Não seria uma surpresa se essa (como tantas outras) falas do filme tivessem sido retiradas dos diários de Miller ou até mesmo de uma conversa/discussão com sua mulher.

É sabido que as gravações de Os Desajustados corriam paralelamente ao desmoronamento do casamento de Marilyn com Miller. A atriz mergulhava profundamente em sua depressão e insegurança, potencializadas por Paula Strasberg e pelo tratamento que fazia há anos com seu psicanalista Ralph Greenson. Assim como os Mustangs, Marilyn também já estava com hora marcada para morrer.

Ao mesmo tempo em que Marilyn se afundava em barbitúricos, Houston perdia seu dinheiro no cassino local e Gable e Clift se afogavam na bebida. O clima ficou ainda pior quando Houston pediu que Miller reescrevesse boa parte do roteiro, o que prejudicava o trabalho de todos ao receber todos os dias pela manhã uma nova versão do roteiro, principalmente para Marilyn, que era insegura e perfeccionista.

Depois do atraso das filmagens de Adorável Pecadora, foi a vez de Os desajustados. Marilyn enfrentou a pós-sincronização de um, seguida das filmagens de outro, que logo se transformou num caos. Gable se acidentou ao ser arrastado por um carro a 40 km/h e o dublê de Clift foi gravemente ferido por um cavalo. Durante as filmagens, Sinatra convidou Marilyn para ir a Cal Neva Lodge, às margens do Lago Tahoe, uma cena do filme foi rodada alí e mostrava Roslyn saindo do Lago.

Ao que tudo indica, a atriz ainda estava abalada pelo turbulento e fulminante affair com Yves Montand; ambos precisavam estar presentes na estreia de Adorável Pecadora que seria em Reno, em 21 de agosto de 1960. As costumeiras fofocas da imprensa esquentaram o clima pré-evento, mas por conta de um incêndio no Crest Theater de Reno, a estreia evento foi cancelada.

No fim de agosto, Marilyn foi internada no WestSide Hospital para uma semana de repouso, na saída foi aclamada por uma multidão. Ficou mais do que evidente que ela não perdera o trunfo de sua presença, mesmo que em situações como essa.

Desajustados

Os Desajustados é um filme melancólico por excelência, ao mesmo tempo em que apresenta ao espectador um realismo cru, selvagem, em que os grandes horizontes do deserto de Nevada não significam mais caminhos abertos, mas a solidão inevitável de todos os seres humanos frente a um mundo que transformam e civilizam, mas não compreendem.

Roselyn, por amor, introduz o velho caubói no mundo moderno. Mundo este antagônico ao machismo daquele ambiente. Revela-lhe que aquele orgulho de caçar Mustangs, aquela alegria de ser um homem livre do deserto, na realidade, nos dias de hoje, não vale mais nada.

Renunciar a essa exacerbação de si é também aceitar a vida, vencer o medo. Será? O fim da estrada é onde a estrada encontra o ceú. Visão infinita, desértica, melancólica, se não a morte? Miller conclui com uma fusão amorosa do horizonte no além.

Huston mostra ao espectador que a glória dos grandes heróis do passado (do que vemos nos filmes de cawboy) não existem mais, agora estão resguardados apenas na idealização. O trio Gay, Guido e Perce parecem mais uma caricatura de si mesmos. Miller queria destacar a imensidão árida e seu estado de perdição, a constatação da decadência nos EUA no final dos anos 1950, o escritor achou que Houston não conseguiu colocar a presença da morte ao lado do amor que une esses “desajustados”. A vida real se encarregou de fazer isso.

Veja o trailer: