Por Ana Carolina Diederichsen
O clássico de 1958, dirigido pelo mestre Alfred Hitchcock, recentemente desbancou Cidadão Kane (1941) como o melhor filme de todos os tempos por uma prestigiada publicação especializada do British Film Institute. O anterior detentor da posição, de Orson Welles, figurou na posição por mais de 50 anos.
Desde o os créditos iniciais o filme já se destaca dos demais, principalmente para a época em que foi produzido. A abertura com animações e efeitos que simulam ilusões de ótica e caleidoscópios intriga. O colaborador de longa data do diretor, o designer Saul Bass, criador da famosa abertura é também o responsável pelos pôsteres e parte gráfica. A música e os pequenos vórtices coloridos dão a leve sensação de hipnose e já apontam a direção que o filme vai seguir.
Durante uma perseguição policial sobre os telhados de São Francisco, um detetive sofre um acidente e fica dependurado em uma calha. Na tentativa de resgatá-lo, um policial acaba despencando e morre. Nesse momento, John ‘Scottie’ Ferguson (James Stewart) cria um bloqueio e passa a sofrer de acrofobia (medo de altura). Já nesse clipe inicial vemos uma das mais fortes cenas do filme, que se tornou histórica ao criar um novo efeito visual para representar a vertigem.
Esse efeito consiste no movimento simultâneo de câmera e lente criando a sensação de que, embora você não altere sua posição inicial, a sua percepção de profundidade se altera. O efeito criado pelo operador de câmera Irmin Roberts em parceria com o diretor de fotografia Robert Burks, conhecido como contra-zoom ou dolly out, recebeu diversos apelidos derivados de seu uso no filme, como Hitchcock effect, ou Vertigo effect. Em momentos específicos, que visam retomar a sensação causada pelo trauma de Scottie, o efeito reaparece.
Em função do grande trauma sofrido e de algumas debilidades físicas temporárias, John é afastado do serviço de detetive. Sabendo disso, Gavin Elster, um antigo colega de escola aproveita a licença para pedir sua ajuda. Madelaine Elster (Kim Novak), sua mulher tem apresentado um comportamento estranho, com ares melancólicos e tendências suicidas. Elster está convencido de que ela está tomada pelo espirito de uma ancestral louca e pede que John a siga para tentar desvendar o mistério e evitar uma tragédia. Por considerar a ideia sobrenatural uma grande besteira, o detetive nega de imediato, mas acaba cedendo após insistência do colega de juventude, que teme pela vida de sua bela mulher.
Madeleine, de beleza sóbria e misteriosa, imediatamente encanta o personagem de Stewart. Mais para suprir a própria curiosidade do que pelo serviço em si, ele segue todos os passos da moça pela cidade. A cada momento seu fascínio por ela aumenta. Ela é tão intrigante que parece estar se exibindo a cada gesto ou olhar desiludido, como se no fundo estivesse tentando alcançar alguém num pedido desesperado de socorro.
Algumas das atitudes de Madeleine são deveras curiosas. Com frequência ela visita um cemitério, onde fica prostrada por horas, como que em transe. O tumulo em questão é de Carlota Valdez, a mesma figura de um quadro que ela repetidamente visita em um museu da cidade. Sempre carregando as mesmas flores e com o mesmo penteado que a retratada. A câmera subjetiva de Hitchcock não é nada sutil, e faz questão de nos apontar tais coincidências, direcionando nosso olhar ao passear pela tela.
Aqui a subjetividade ganha papel de destaque. A todo momento estamos na posição do detetive que se desdobra para juntar as peças de um quebra-cabeça que vai se construindo cena a cena, de maneira cada vez mais complexamente elaborada.
Durante essa sequência, somos embalados pela bela música de Bernard Herrmann (o famoso criador da trilha de Psicose) que corrobora com o clima de mistério e paixão nascente. Consegue ao mesmo tempo criar o suspense e ser romântica, refletindo perfeitamente o clima de fascínio e obsessão que ronda o filme.
Madeleine, em um de seus passeios sem rumo, se atira na baía de são Francisco, tentando tirar a própria vida. Scottie se vê forçado a resgatá-la e deixa de ser um espectador e passa a ser um sujeito ativo na historia de Madeleine, com o poder para interferir nela.
Nesse ponto de giro, Madeleine toma conhecimento de Scottie, sem saber que ele a seguia. À medida que vão se conhecendo, se apaixonam e cedem ao amor e ela começa a tomar conhecimento de sua própria loucura. O próprio nome da personagem já dá indícios de sua loucura. O inicio de seu nome, Mad, em inglês, significa louco. Algumas vezes, quando balbucia o nome de sua amada, Scottie evidencia esse aspecto.
Ele, já totalmente envolvido pela bela, realiza um esforço supremo para provar a ela e a si mesmo, que Madeleine não está louca. Em busca de respostas, vão até uma antiga missão espanhola, que abriga um convento. Lá, ela parece entrar em transe e sobe descontrolada na torre do sino. Scottie tenta segui-la, mas seu medo de altura o impede de alcançar o topo. Impotente, ele vê sua amada despencando do alto da torre. Mais uma vez nos deparamos com a vertigem do protagonista e vemos o famoso efeito “vertigo”.
A cena da escadaria da torre, como tantas outras do longa, é emblemática. Apresenta angulações, enquadramentos com perspectiva distorcida, sombras e tonalidade em sépia, mostrando toda a influência do expressionismo alemão no trabalho de Hitchcock. O diretor iniciou sua carreira no cinema mudo alemão, no departamento de arte e escrevendo textos.
Atormentado pela perda de seu amor e pela culpa vemos, em outra cena famosa, o personagem de Stewart tendo um pesadelo. O tom onírico é dado pela animação, alteração de tonalidade de iluminação e diversos efeitos visuais, utilizados de maneira inédita até então. Ainda inconformado, se interna em uma instituição, onde fica em estado de torpor, até se recuperar, mas não totalmente.
Após sair do hospital, ele continua fascinado pela lembrança de Madeleine e revisita os lugares e os passos percorridos por ela. Ao acaso, acaba encontrando uma bela jovem, Judy Barton, menos sofisticada e morena, que se parece muito com sua amada.
Embarcamos em um novo ponto de giro e o filme se transforma, ganha uma nova trama, muito conectada à anterior. Em um ímpeto, ele passa a persegui-la. Aos poucos vão construindo um relacionamento, mas John ainda atormentado pela lembrança de Madeleine, pede para que ela se transforme no alvo de seu desejo. Judy cede, por estar cega de paixão. A transformação física coordenada por Scottie precede a mudança comportamental que ele passa a exigir dela. O que vem na sequencia é surpreendente (para Scottie, por que felizmente Hitchcock nos conta com intendência o que vai acontecer…).
Além da história intrigante, baseada no livro “D’Entre Les Morts”, escrito por Pierre Boileau e Thomas Narcejac, escrito especialmente para que Hitchcock pudesse adaptá-lo, Um Corpo que Cai ainda tem diversos fatores que o confirmam na lista de um dos melhores filmes de todos os tempos.
A direção de arte é um caso à parte e rendeu uma indicação ao Oscar. A construção de Novak, em ambos os papéis, fica muito bem delimitada pelo figurino e maquiagem. Enquanto Madeleine é sempre sóbria, com cores melancólicas e modelos luxuosos, sempre com um lenço de tecido mais fluido para corroborar com o ar de mistério e nebulosidade de seu personagem, Judy é mais despojada, usa cores, enfeites, maquiagem pesada e colorida. O figurino assume papel de destaque, principalmente quando Scottie tenta deixar Judy mais parecida possível com o alvo de sua obsessão, Madeleine.
Além disso, pode ser considerado um bom exemplo de como os recursos técnicos são aliados na hora de contar uma história. As sequências com apoio de efeitos visuais (simples para os padrões de hoje) são fundamentais para que a história seja contada. A questão é saber dosá-los com engenhosidade, o que Hitchcock domina.
Para o mestre do suspense, uma das formas mais eficazes de suspense é a informação. O público deve ser munido de detalhes e conhecimento de situações para que ele mesmo crie a expectativa do que está por vir. É necessário saber que alguma está coisa esta acontecendo, a chave é não entregar antes da hora exata, quando ou como será o desenrolar, para criar o elemento surpresa.
Nesse longa, com roteiro de Samuel Taylor, Hitchcock segue a risca seu próprio conselho. O filme pode ser facilmente dividido em terços. No primeiro, as informações todas são expostas. No segundo, se desenrolam e no terceiro um novo mistério é lançado, com o propósito de solucionar o primeiro. O que torna a trama ainda mais interessante é o fato de o espectador descobrir a grande virada do roteiro, antes mesmo do protagonista. Munido de informação, o público cria a expectativa e da expectativa, nasce o suspense, que se mantem até a última cena.
Kim Novak encarna com fidelidade o padrão de beleza feminina idealizado por Hitchcock. Sem um traço de vulgaridade, consegue ser extremante sensual. Em Um Corpo que Cai ele usa do mesmo artifício que constrói o suspense para criar suas personagens femininas. Para ele, sensualidade, mistério e suspense andam lado a lado.
Obsessão, paixão, desejo e as concessões que são feitas em função desses sentimentos fortes, fazem parte da gama temática de Hitchcock, talvez como reflexo de sua própria obsessão. Mas esse romance, envolto em mistérios que vão além dos clichês, tem reviravoltas imprevisíveis, é basicamente sobre o espírito humano e a dificuldade de lidar com as perdas.
VOCÊ NÃO SABIA QUE…
– O livro “D’Entre les Morts”, de Pierre Boileau e Thomas Narcejac foi escrito especialmente para Alfred Hitchcock.
– Vera Miles era a escolha inicial de Hitchcock para o papel de “Madeleine”, mas ela teve que deixar o projeto em função de uma gravidez.
– O diretor faz uma de suas clássicas aparições aos onze minutos de filme, vestindo terno cinza e caminhando no estaleiro.
– A iluminação no filme ganha um tom mais escuro em alguns momentos marcantes, antecipando momentos de grande tensão, como se obrigasse o espectador a prestar mais atenção nas imagens.
– O filme criou um efeito visual pioneiro no cinema que mais tarde seria largamente utilizado, o “efeito vertigo” ao realizar simultaneamente um movimento de câmera e lente, brinca com a percepção e reproduz a sensação de vertigem.
– O trabalho de restauro da película, realizado nos anos 1990, consumiu mais de US$ 1 milhão.
Os aspectos narrativos de Um Corpo que Cai são abordados em detalhes no curso Introdução à Linguagem Cinematográfica ministrado pelo professor Donny Correia. Mais informações no link abaixo.
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