O cinema de Abbas Kiarostami, o mais reverenciado entre os diretores iranianos, é um passeio entre a realidade, a ficção e o próprio fazer cinematográfico. Uma autorreflexão que coloca em tela não apenas o próprio diretor, mas também a nossa fé no processo de storytelling e na separação entre realidade e ficção.
As características desse cinema, que não se acanha ao abusar da metalinguagem, passam diretamente pela visão de mundo de Kiarostami, que percebe o quadro como uma possibilidade não apenas de desvelar uma história diegética, mas também de estimular a nossa visão do além-tela. Para o diretor, o mundo existe para se tornar imagem e a imagem existe para ser descoberta.
Kiarostami, fortemente influenciado pelo trabalho de Yasujiro Ozu, possuía uma capacidade inigualável de se infiltrar na realidade iraniana e de expor as convenções sociais do seu povo. Transgredindo as fronteiras entre o documentário e a ficção, os seus filmes propunham uma representação sensível e um olhar atuante sobre essas realidades.
Antes relegado aos grandes festivais e as praças de nicho, Kiarostami, que lá atrás não se furtou de se apropriar da praticidade e do baixo custo do cinema digital para contar suas histórias, agora também marca presença na onda dos streamings. No seu robusto catálogo de clássicos, o Telecine tem algumas das obras-primas desse mestre do novo cinema iraniano, tais como Através das Oliveiras (1994), Gosto de Cereja (1997) e O Vento nos Levará (1999), entre outras. Agora está mais fácil conferir as obras, já que o Telecine presenteou nossos leitores com um acesso grátis de 60 dias (pegue o seu aqui) aos filmes.
Nessa coluna vamos falar um pouco sobre uma característica particular que une todas as obras do diretor.
O EXTRACAMPO E A PROJEÇÃO DO REAL
Entre estradas tortuosas, conversas casuais e mergulhos nas construções sociais do Irã, Kiarostami exercitava frequentemente o desapego ao entregar nas mãos do espectador a capacidade de criar a sua própria realidade. Seus personagens dialogam e transcendem a noção do quadro, indicando um universo mais amplo e mais rico do que apenas o que a câmera consegue enquadrar.
Em Gosto de Cereja, é a depressão e os percalços da vida do protagonista que parecem se estender além-tela, transbordando do quadro, mas que se apresentam como fantasmas pairando em cada frase dita.
Badii (Homayoun Ershadi) é um homem de meia-idade que decidiu tirar a própria vida, mas que para isso precisa da ajuda de alguém que possa jogar terra sobre o seu corpo em uma cova. Os olhares de Badii parecem buscar no extra-campo uma resposta para as suas angústias, mas também dialogam com a pouca informação fornecida pelo personagem sobre a própria história.
As suas dores estão ali presentes como cicatrizes em sua alma, mas também estão pairando sobre a montanha com as estradas que se espalham na paisagem em zigue-zague, se tornando seu habitat. Mas além daquele morro, além daquelas curvas e daqueles sentimentos, tem um personagem, uma família e uma história que não se apresentam em tela com clareza, mas que se insinuam através de dicas e olhares.
Em determinada passagem, Badii vai até a janela de uma sala de aula e chama por um professor que conhecera momentos antes. Mas seria aquela realmente uma sala de aula? A nossa visão é apenas a de Badii envolto pelo esquadro da janela tentando se comunicar por mímica com um dos alunos para que chamasse atenção do professor. Mas… será que era mesmo um aluno? O professor era bem quisto por esses alunos, caso realmente existam? A sala tem mesas, cadeiras e um quadro-negro? Está cheia ou vazia? No fim o que importa é a nossa bagagem e as nossas expectativas, a realidade fora-de-quadro está ali para ser abraçada, moldada ou ignorada.
O cinema de Kiarostami é, antes de tudo, uma constante conversa entre realidade, ficção e imaginação. Uma provocação em forma de cinema minimalista.
O Vento nos Levará, por sua vez, se debruça ainda mais sobre o extra-campo, deixando a sutileza de Gosto de Cereja de lado para abraçar de forma ainda mais clara o que está fora de quadro, ao ponto de conhecermos um personagem que em nenhum momento aparece em tela, mas que tem o seu arco narrado através de gritos trocados entre ele e o protagonista. Ele surge cantando, dialoga com o protagonista, busca realizar o seu trabalho e tudo isso sem aparecer um segundo em tela. Quando um acidente o coloca em uma situação de risco, tudo que vemos é um buraco e uma nuvem de poeira, mas ele está ali, ele sempre esteve ali, ainda que o quadro não o comportasse.
Abbas Kiarostami conseguiu, ao longo de sua filmografia, extrair a poesia da realidade enquanto demonstrava o papel do cinema como retrato desse real, mesmo sem nunca deixar de lado a capacidade do público de se envolver com a história da sua construção.
São as vírgulas, os parênteses e os sujeitos ocultos que tornam o trabalho do diretor genial, seu cinema é um poço de descobertas e vale ser revisitado sempre que possível, seja para criarmos nossas próprias histórias nas brechas que ele nos oferece ou apenas para mergulharmos no trabalho impecável ao contar a história do seu povo.
Não é todo dia que temos cinema iraniano disponível para assistir de graça e de forma tão prática. Por isso, te aconselho a resgatar o quanto antes o cupom de 60 dias que o Telecine ofereceu especialmente para quem nos acompanha. Quem já tem Telecine no pacote de TV por assinatura pode utilizar a plataforma gratuitamente, é só acessar com login da operadora.
*Esse post foi produzido pela equipe do Cinemascope e conta com o patrocínio do Telecine.
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