O Movimento Antropofágico influenciou desde os modernistas de 1922 até os cinema-novistas de 1960. A partir de observações derivadas da exposição Tarsila Popular, traçamos aqui um paralelo entre duas épocas de efervescência cultural.
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.” – Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade. Publicado originalmente em 1928.
Com esta frase, Oswald de Andrade abria o Manifesto Antropófago e, com ele, inaugurou um dos movimentos artísticos mais importantes da história do nosso país: o Modernismo. Ao lado dele, nomes como o de Lasar Segall, Anita Malfatti e Victor Brecheret, convergiram elementos das vanguardas europeias pré Primeira Guerra Mundial para assimilá-los em fragmentos misturados em uma espécie de antropofagia nacional.
O cubismo foi uma das vanguardas assimiladas e Tarsila e Di Cavalcanti usaram sua estrutura básica para compor suas obras. São Paulo, sempre o centro de progresso industrial e da convergência da imigração italiana foi o cenário perfeito para o desenvolvimento do Modernismo.
É neste contexto que Di Cavalcanti cria a Semana de Arte Moderna de 22, um evento pensado para que causasse impacto e escândalo e que é o ápice deste processo de atualização das artes pela afirmação da identidade nacional, que buscava o retorno às raízes culturais do país.
De 13 a 17 de fevereiro de 1922, o Teatro Municipal de São Paulo foi tomado por sessões literárias e musicais, exposição de artes plásticas com obras de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Victor Brecheret, Ferrignac, John Graz, Martins Ribeiro, Paim Vieira, entre outros. É após a Semana de 22 que Anita apresenta Tarsila do Amaral à Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia para juntos, formarem o “grupo dos cinco”.
Filha de fazendeiros do interior de São Paulo, Tarsila desenvolveu seu estilo de trabalho com base em sua vivência em Paris, a partir de 1923. Por meio das aulas com André Lhote e Fernand Léger aprendeu com os estilos modernos da pintura europeia, como o cubismo, para transformá-los à sua maneira em algo singular.
Ainda que não tenha participado efetivamente desta Semana de Arte Moderna, Tarsila foi responsável pela criação de uma nova linguagem artística brasileira, principalmente no campo da pintura. Para Mário de Andrade, ela foi a primeira a conseguir realizar uma obra de realidade nacional.
Podemos dividir sua obra em 3 fases: A Pau-Brasil, a Antropofágica e a Social. Em sua primeira fase, que se inicia em 1924, ela rompe com todo tipo de conservadorismo, enchendo-se de cores e formas, colocando na tela tudo o que havia visto em sua viagem de “redescoberta do Brasil” com seu grupo de amigos modernistas. Estas obras refletem primordialmente os temas tropicais, a fauna, a flora, o progresso pelas máquinas, pelas ferrovias, que contrastavam com a riqueza natural do país.
A fase Antropofágica foi idealizada por seu marido na época, Oswald de Andrade. Em um momento em que buscavam digerir influências estrangeiras para que a arte feita por eles tivesse traços mais brasileiros. Tarsila pinta o Abaporu em 1928 e presenteia o marido com ele. O “homem que come carne humana”, segundo a tradução indígena, é a obra que inaugura o movimento antropofágico dentro do modernismo, sendo mais uma referência no sentido de canibalizar as técnicas estrangeiras para digeri-las em obras que fossem híbridas, únicas e genuinamente brasileiras, incluindo elementos locais, indígenas e afro-atlânticos.
A fase Social de Tarsila é a terceira e última grande fase, que culmina com a sua ida à Paris após passar pela União Soviética. Lá, ela trabalha como operária em uma construção e a partir de seu quadro Operários, de 1933, inaugura uma fase de criações voltadas aos temas sociais da época.
Se debruçando sobre isso, o MASP trouxe a exposição Tarsila Popular a fim de levantar o debate sobre o que é popular, sobre as origens da artista e sobre, principalmente, o que é o Brasil no período de modernização e efervescência cultural. Nos trabalhos de Tarsila, o popular se manifesta pelos personagens de lendas e mitos, por indígenas e negros, animais e plantas em cenários que caminham pelo subúrbio, pelas fazendas e pelas favelas, pelas cores: “azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante”.
A ideia da antropofagia, artística e esteticamente falando, foi retomada nos anos 1960 com a peça O Rei da Vela, do Teatro Oficina, e com o movimento tropicalista de 1967-1968. No cinema, o sarcasmo surge como contraponto da esperança da antropofagia oswaldiana. O retorno às origens do descobrimento não serve mais como libertação do povo, nesta releitura, prevalece o pessimismo de um país imerso em um regime civil militar que perseguia, torturava e assassinava seus intelectuais.
O conceito retomado nesta época, ainda referencia à apropriação do que não é nosso, da cultura massificada importada, da potência mundial artística e econômica – na época de Oswald a Europa e na década de 1960, os EUA. A presença da antropofagia nos filmes produzidos nesta época, à exemplo do Cinema Novo, é significativa de um momento de transição, em que o canibalismo oswaldiano e as cores de Tarsila não cabem mais na representação de um país pessimista e anti-utópico.
Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, realizado em 1969 surge como resposta pelo afunilamento das perseguições e pela clausura política decretada pelo AI-5 em 1968. O filme extrapola a antropofagia colonial e usa o livro de Mário de Andrade para tratar o canibalismo como imagem das relações sociais no país.
O filme inova a estética do Cinema Novo ao incorporar elementos da chanchada pela atuação de Grande Otelo e utilizar o kitsch do Tropicalismo para transfigurar fatos da vida política que invadem o relato épico da trajetória de Macunaíma entre figuras da mitologia popular brasileira.
Ao lado de Macunaíma, Terra em Transe de Glauber Rocha é o mais icônico retrato do Cinema Novo e dessa necessidade de produzir algo verdadeiramente brasileiro. Mais atual do que nunca, a obra cria a fictícia Eldorado, em um momento pré-revolução em que há uma reação golpista de um movimento de direita. Glauber põe em cena militantes, militares, empresários, imprensa, intelectuais e políticos, todos envolvidos na disputa pelo poder. A referência ao momento político, ao ciclo de ditaduras militares, tanto do Brasil quanto da América Latina é clara. Terra em Transe, enquanto símbolo da retomada antropofágica pelo cinema, provoca a autocrítica em forma de arte. Glauber propõe o transe histórico e subjetivo, para delimitar em tela o delírio político brasileiro.
É maravilhoso ter boa parte da obra de Tarsila de volta ao lar em um momento em que é imprescindível defender a arte e o cinema no país. O cinema não anda separado das artes plásticas, da música, do teatro, da literatura, da fotografia, da arquitetura. É essencial sair da tela projetada, andar pela cidade, pelos museus, e entender que somos filhos e filhas de mil homens e mulheres responsáveis pela arte que fazemos hoje.
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
A exposição Tarsila Popular fica no MASP até o dia 28 de julho.