Organizando a bagunça em meu guarda-roupa encontro um pôster bem envelhecido de um filme que, curiosamente não faz parte do meu gênero favorito, mas por algum motivo o guardei durante uns 20 anos. O filme em questão é O Piano (1993), uma produção neozelandesa, co-produzida pela Austrália e França. O pôster traz uma mulher de vestido longo em uma praia ao lado de um piano, e em cima deste piano está uma menina, uma imagem muito bonita por sinal, que me desperta algumas lembranças deste filme, depois de muito me esforçar, consigo me lembrar de trechos da trilha sonora, e em poucos minutos estou decidido a revisitá-lo, e quando o faço, entendo por que guardei este pôster por todos esses anos.

Ada (Holly Hunter) e a filha (Anna Paquin) chegam à Nova Zelândia para cumprir um contrato matrimonial com um homem que nunca viu, um fazendeiro, Alisdair Stewart (Sam Neill). Ela chega trazendo roupas, objetos e um piano, porém o novo marido acha o instrumento supérfluo e alega dificuldades para o transporte, e resolve deixa-lo na praia. O piano acaba sendo vendido a um vizinho meio maori, George Baines (Harvey Keitel), em troca de terras, mas a compra do piano não passa de um pretexto para se aproximar de Ada durante as aulas de música. Tem início uma paixão proibida.

O trailer nos mostra algumas qualidades do filme: uma fotografia bonita, boas atuações, uma trilha sonora cativante, promete ser uma história de partir o coração. Porém a história é mais do que o trailer revela, e mais do que eu revelei no parágrafo anterior, espero ter atiçado a sua curiosidade sobre o filme.

Holly Hunter é a protagonista deste filme, e entrega uma performance digna do Oscar (que ela ganhou), algo curioso visto que ela passa o filme inteiro sem dizer uma palavra, uma vez que a personagem é muda, e isso dá a oportunidade da atriz se expressar de outras formas, através de suas feições, gestos, no seu silêncio proposital, e sua postura diante do piano, demonstrando satisfação ou desconfiança diante das ansiedades de Baines, sem esquecer do piano como uma extensão do seu corpo, pois embora muda, Ada se expressa através deste instrumento, a música que ela toca reflete suas emoções. A atuação de Hunter é tão convincente que muitas pessoas chegaram a acreditar que ela realmente era muda, mas quem acompanhava a trajetória da atriz até então sempre a via em papéis mais cheios de energia, e muito falante, talvez este tenha sido o motivo pelo qual Holly Hunter foi escolhida para este papel, que também foi oferecido a Sigourney Weaver, Anjelica Huston, Jennifer Jason Leigh, Isabelle Huppert, Juliette Binoche, e Madeleine Stowe. Como se a excelência na atuação não bastasse, a atriz chegou a aprender a tocar piano como preparação para este papel, portanto, em muitas das cenas é a própria Holly Hunter tocando o piano, e para complementar, a atriz teve de aprender a linguagem dos sinais e ensiná-la à atriz mirim Anna Paquin.

Vendo este filme quando criança, despertando meu lado cinéfilo, o único rosto conhecido para mim era o de Sam Neill, o cara do Jurassic Park (1993), o filme o que me levou à cinefilia, para mim, se o ator principal do meu filme favorito (na época) está neste filme, é o suficiente para me convencer a vê-lo. Enquanto Alan Grant tinha uma aversão a crianças, aqui o personagem de Sam Neill, Alisdair Stewart, parece ter uma repulsa à própria esposa, sempre indiferente às necessidades dela, e às tradições dos seus vizinhos maori, porém ele também se mostra um homem ciumento e levado a extremos quando provocado. Stewart representa vários pontos negativos da masculinidade toxica, tão presente nos filmes da época, tão presente na sociedade à época (e infelizmente este fenômeno é atemporal), ele é o “chefe da casa”, ele acredita que sua esposa é uma posse (o casamento foi arranjado com o pai dela), e acredita que ela deva lhe demonstrar afeto, enquanto ele não se dispõe a fazer o mesmo. Embora ele se esforce para não demonstrar seus sentimentos, há um momento em que, antes de ele conhecer Ada pessoalmente, Stewart admira a foto dela, e penteia seus cabelos, como se quisesse causar boa impressão, mas não sabe como, afinal ele é um produto do seu tempo, moldado desta forma. A persona de herói que Sam Neill tinha para mim em Jurassic Park estava sendo desconstruída, aqui, seu personagem não é nada agradável. Neill descende de família inglesa por parte de mãe, e neozelandesa por parte de pai, sua família se mudou para a ilha sul da Nova Zelândia quando ele tinha 7 anos, e lá ele estudou literatura inglesa, trabalhou em teatro, e depois com cinema, trabalhando com roteiro, direção e montagem, o que mostra que Neill é um profissional versátil.

Contrapondo com o personagem de Sam Neill está o personagem de Karvey Keitel, George Baines, dono de terras, e intérprete dos maori. Sua aparência é um tanto quanto misteriosa, assustadora, o fato de ele (semi)pertencer a uma tribo exótica tornam o personagem intimidador, se fossemos comparar a um conto de fadas, Ada seria a Bela, e Baines seria a Fera. Suas intenções são puras, ele parece realmente se importar com Ada, e se sente atraído por ela, porém seus métodos são questionáveis, após adquirir o piano, ele propõe devolve-lo a Ada, tecla por tecla, por momentos de erotismo. Mesmo que isso seja chantagem, é o oposto do que ela recebe do marido, e a visão que ela (e o público) tem de Baines muda organicamente, de aversão a empatia. Ele não a força, e recua quando percebe que deixou Ada desconfortável, Baines chega a cancelar o trato quando percebe que está levando essa exploração de Ada longe demais.

E o que falar daquela que rouba a cena, Anna Paquin, que representa … o nome dela não é mencionado em momento algum durante o filme, mas nos créditos finais vemos que seu nome é Flora. Sua personagem dá dimensão à história, enquanto a mãe é muda, a filha é extremamente eloquente e usa isso a seu favor, por vezes ela é a intérprete de sua mãe – e acredito que ela nem sempre traduz ao pé da letra o que sua mãe lhe falara na linguagem dos sinais –, ela consegue nos fazer a acreditar em suas palavras, mesmo que seja uma fantasia da sua cabeça (ou será que ela mente intencionalmente?), como vemos na cena em que ela explica por que a mãe é muda. Ela é uma versão em miniatura de Ada, porém mais obstinada que a mãe. A atriz ganhou o Oscar por esta interpretação, sua estreia no cinema, Anna Paquin é a segunda atriz mais jovem a receber a estatueta. Paquin se mudou para a Nova Zelândia aos quatro anos de idade, ela não planejava seguir a carreira de atriz, ao invés disso a menina queria ser ministra ou advogada, mas ao acompanhar sua irmã num teste de elenco para um filme no país em que elas moravam, Anna Paquin foi escolhida.

A relação entre Ada, Baines e Stewart é desconfortável, e assim deve ser. Ada inicialmente recorre a Baines para reaver seu piano, mas gradualmente o motivo passa a ser a sensação de ser desejada por alguém, algo que falta em seu casamento com Stewart, chegando ao ponto de se ver atraída por Baines. Nós aceitamos o vizinho maori como um par romântico legítimo porque tudo ao redor de Ada, com exceção do seu adultério maduro, é tão afetado, opressor (ela saiu de sua terra natal para ir morar num local inóspito, cercado por um pântano, de difícil acesso, e vive com um marido frio). Nessas condições, o amor genuíno vindo de Baines é bem vindo, mesmo que seja por meio de extorsão.

Anteriormente fiz uma comparação entre o personagem Baines e a Fera do conto A Bela e a Fera, porém O Piano traz explicitamente uma referência ao conto d’O Barba Azul, na cena em questão os personagens estão assistindo a uma peça teatral do conto criado (este não foi coletado das tradições populares como os outros contos de fadas, mas sim criado, embora alguns elementos da história tenham sido inspirados por outros mais antigos nas 1001 Noites, e no Pentamerone) por Charles Parrault, no conto uma mulher tem o casamento arranjado pelos próprios pais, com um homem, proprietário de terras, que até então não conheciam, um homem horrível de barba azul que já se casara inúmeras vezes, mas ninguém sabia do destino das outras mulheres. Ele convida toda a família da moça para uma temporada em um de seus castelos para poderem se conhecer melhor, e assim desfazer esta primeira impressão ruim. Após o casamento, o Barba Azul parte em uma viagem, mas antes de partir entrega um molho de chaves para a esposa, lhe diz que ela pode entrar em ambiente quarto exceto um quarto pequeno que pode ser aberto por uma chave específica. Ela concorda com as condições, e logo após a partida do marido, faz uma exploração ao castelo, e após ponderar bastante, cede à tentação e curiosidade em saber o que há no quarto proibido, onde encontra os corpos das ex-esposas do Barba Azul, no susto ela deixa a chave cair sobre uma poça de sangue, e não consegue limpa-la. Ao chegar de viagem, Barba Azul indaga sobre o sangue na chave, revelando que ela falhou no teste, irado o homem tenta mata-la, ela só consegue escapar porque seus irmãos chegam para defende-la. Ela escapa, herda as terras e os bens do marido, e encontra a felicidade com outra pessoa. A peça de teatro não foi inserida no filme por acaso, como vocês podem ver neste resumo, há muitas semelhanças entre Ada e a protagonista do conto de fadas, em ambos os casos a ausência do marido vem seguida de um teste de sua fidelidade, a traição é descoberta através de uma chave (“tecla” em inglês é “key”, que também significa “chave”), em ambos os casos os maridos reagem violentamente à traição. Bruno Bettelheim, autor de A Psicanálise dos Contos de Fadas (1976), sugere que o sangue na chave pode simbolizar um ato sexual com outras pessoas, durante o período em que o Barba Azul esteve ausente (não disse isso no resumo, mas assim que o homem viaja, a moça recebe a visita de várias pessoas que não ousavam entrar lá com a presença do Barba Azul), se esta interpretação for válida, eis mais uma semelhança entre as duas histórias. Lendo o capítulo que Bettelheim decorre sobre O Barba Azul encontro outro parágrafo que se relaciona com O Piano:

 

“Para a criança, creio que parte da atração da história é que ela confirma a sua ideia de que os adultos têm segredos sexuais terríveis. Ela também enuncia aquilo que a criança conhece bastante bem a partir de sua própria experiência: é tão tentador descobrir os segredos sexuais que até mesmo os adultos estão dispostos a correr os maiores riscos imagináveis. (BETTELHEIM, Bruno. 1976, p. 404)

Da esquerda para a direita, e de cima para baixo: 1) Ada espiando por entre os dedos no início do filme, apresentando o motivo “espiar”; 2) Alisdar Stewart olhando através da lente da câmera fotográfica que registrará seu casamento, mais uma vez o motivo “espiar”; 3) Flora espia por uma fresta na parede enquanto do outro lado, sua mãe tem relações sexuais com Baines; 4) Stewart espia por uma fresta na parede enquanto do outro lado, sua esposa tem relações sexuais com Baines.

Sem dúvida que em O Piano, a curiosidade sexual da criança é representada, Flora espia por entre as frestas enquanto sua mãe “dá aulas de piano” para o Sr. Baines. Outro livro de psicanálise também trata deste assunto, Os Filmes que eu vi com Freud (1994), o autor Waldemar Zusman questiona sobre a mudez da personagem de Ada, que não é explicada durante o filme, o autor sugere que talvez tenha sido um episódio traumático, e uma vez que a mãe de Ada jamais é referida no filme, algo muito grave deve ter acontecido com ela, Ada pode ter espreitado uma relação sexual dela com outro homem, e ficou muda para não ter de contar ao seu pai, e ela deve ter fugido com o amante, já que é completamente ausente na casa. Ada repete o mesmo destino de sua mãe, mas em contraste, sua filha (à mesma idade que Ada tinha quando parou de falar) quebra o silêncio. Nada disso é comprovado, é a forma que Zusman interpretou este quadro, se faz sentido… pra mim faz, porém, a novelização de O Piano, pela própria Jane Campion, lançado um ano depois do filme, revela o verdadeiro motivo da mudez de Ada. Segundo a autora, o pai de Ada a repreendeu por ter dito algo, e como punição, ela decidiu ficar sem falar nada, até que perdeu completamente a habilidade de falar, um pouco disto pode ser percebido na narração inicial, “Meu pai diz que é um talento sombrio, e o dia em que eu decidir parar de respirar, será o meu último”. Pessoalmente, eu prefiro a interpretação psicanalítica de Zusman.

Da esquerda para a direita, e de cima para baixo: 1) A protagonista do conto O Barba Azul encontra os corpos das ex-esposas do seu marido, ilustração por Hermann Vogel; 2) Apresentação teatral do conto O Barba Azul, nesta imagem vemos o antagonista da peça ameaçar sua esposa com um machado; 3) Apesar de George Baines não saber ler, Ada lhe escreve uma mensagem “Querido George, você tem meu coração, Ada McGrath” numa tecla de piano, uma alusão à mancha de sangue na chave do conto O Barba Azul; 4) O Barba Azul entrega à sua esposa um molho de chaves, ilustração por Gustave Doré; 5) Flora entrega a tecla com a mensagem para seu padrasto; 6) Stewart ameaça sua esposa com um machado, algo antevisto na cena da peça teatral.

Um filme como O Piano, com uma história sensível e marcante como esta não estaria completo se não incluísse uma trilha sonora à altura, afinal o título do filme nomeia um instrumento musical. Michael Nyman é o compositor desta obra, e fez um ótimo trabalho, a trilha sonora segue a atmosfera do filme e reproduz o sentimento de Ada. Enquanto revejo o filme ao ouvir a música tema, me vem à mente uma outra versão desta, pela minha banda de metal sinfônico favorita, Nightwish. A versão de “The Heart Asks For Pleasure First” deveria vir no sexto álbum da banda, Dark Passion Play (2009), introduzindo a nova vocalista Anette Ozlon, porém os direitos sobre a música não foram obtidos à tempo para o lançamento do álbum, assim a música ficou de fora, mas inclusa em um single com cinco músicas, Trials Of Imaginaerum (2012). Esta nova versão foi composta pelo líder e tecladista da banda, Tuomas Holopainen, foram incluídas guitarra e letra. O Piano não impactou não apenas este astro do rock, curiosamente este foi o último filme visto pelo líder da banda Nirvana, Kurt Cobain, visto com alguns amigos um dia antes de cometer suicídio em 5 de abril de 1994, e curiosamente O Piano termina com uma tentativa de suicídio.

O Piano, mesmo sendo um filme pequeno, independente, despretensioso, recebeu oito indicações ao Oscar: Melhor filme, direção, atriz, atriz coadjuvante, roteiro original, edição, fotografia, e figurino. Destes ele venceu três: Melhor atriz (Holly Hunter), melhor atriz coadjuvante (Anna Paquin), e melhor roteiro original (Jane Campion). Todos merecidos, e além do Oscar, O Piano concorreu em 1993 no Festival de Cannes em cinco categorias, venceu duas: prêmio de interpretação feminina para Holly Hunter, e a Palma de Ouro, tornando Jane Campion a primeira mulher a vencer tal prêmio. Curiosamente esta não foi a primeira vez que Campion ganhara um prêmio neste festival, a diretora Neo Zelandeza realizou um curta-metragem, Peel (1986), para a conclusão do curso de cinema e televisão na Austrália e com este filme de formatura, sem grandes pretensões, foi agraciada no festival. Quando o assunto é a representatividade feminina no cinema, é inegável que existe uma desigualdade entre os sexos, mas revendo O Piano, não posso deixar de incluí-la na minha lista de melhores diretores (ambos os sexos), assim como não posso deixar de invejar o seu talento.

O motivo pelo qual guardei o pôster por tantos anos foi porque este filme me marcou profundamente, possivelmente o primeiro filme com nudez que assisti, mas não foi isso que me impactou, foi o fato de eu (com dez anos de idade) poder compreender melhor as relações humanas, as motivações de cada personagem, e depois de crescido, pude compreender melhor o subtexto, e somando estes elementos, O Piano se qualifica como uma obra completa.