Pense por um segundo: qual foi o primeiro filme dirigido por uma mulher que você assistiu? E quando você pensa em “Primeiro Cinema”, em quem você pensa? Se a sua resposta, principalmente para esta última pergunta, foi um homem (insira aqui os clássicos Irmãos Lumiére, Georges Méliès, D.W. Grifith, apenas para citar alguns), está na hora de rever seu conhecimento sobre cinema.

Eu nunca vou esquecer da primeira vez que vi A Fada dos Repolhos (1896), o primeiro filme de não-ficção do mundo, escrito, produzido e dirigido por Alice Guy-Blaché, ou A Concha e o Clérigo, de Germaine Dulac. A sensação é de surpresa, misturada com uma admiração profunda de quem nunca ouviu dizer que no início da história do cinema, era natural que as mulheres estivessem comandando as câmeras.

As diretoras Germaine Dulac, em 1920, e Alice Guy-Blaché, no fim do século XIX.

A Concha e o Clérigo, especialmente, foi o grande responsável por alterar completamente a forma com que eu me relaciono e me interesso por cinema. Enquanto historiadora e apaixonada pelo surrealismo e pela arte, era comum me deparar com obras de Buñuel, Dalí, ou mesmo Méliès, grande responsável pelo meu despertar para o cinema, mas, ao conhecer Dulac, entendi que Buñuel era apenas o sucessor lógico, e ao conhecer Alice, vi que Méliès podia ser (um pouco) menos importante, ao menos para mim.

Há um tempo, em meados de 2017, fiz um curso de crítica cinematográfica, porque mesmo atuando aqui no Cinemascope, queria entender se alguma técnica que eu ainda não tinha tido acesso poderia me ajudar a desenvolver melhor estes textos. Em uma das aulas, talvez a primeira delas, o professor do curso nos iniciou no Primeiro Cinema, colocando em Georges Méliès a coroa de pai e gênio do cinema. Foi então que eu o questionei sobre o lugar de Alice Guy nesta linha do tempo tão masculina e, surpresa, ouvi como resposta o total desconhecimento de sua existência.

A Concha e o Clérigo, surrealista antes do surrealismo. Inspiração ao próprio Buñuel, que só criaria Um cão andaluz um ano depois.

Não se pode culpar ninguém por não conhecer a primeira diretora do mundo, por mais próximo que esteja da atuação cinematográfica. Isso fica muito claro no documentário de Pamela B. Green, de 2018 “Alice Guy-Blaché: A História não Contada da Primeira Cineasta do Mundo”. No filme, Pamela questiona a vários ícones da indústria cinematográfica (entre eles: Geena Davis, Ben Kingsley, Ava DuVernay e Jodie Foster) se conhecem, ao menos de nome, Alice Guy-Blaché e, como resposta quase unânime, ouvia um não.

Como ignorar a existência de uma diretora que já em 1906 escandaliza a sociedade lançando As consequências do feminismo, em que apresenta homens em atividades tipicamente associadas às mulheres, quase que caricaturalmente, enquanto as mulheres ficam livres para aproveitar as regalias que só homens poderiam, indo ao bar e assediando homens nas ruas. É comédia, enquanto é reflexão.

É possível, segundo pesquisas, que Alice Guy tenha trabalhado em mais de mil produções cinematográficas e apenas 130 delas foram encontradas até hoje. Parte de seu apagamento deve-se ao fato de que por um bom tempo, muitos de seus filmes foram creditados a homens. Sua obra passou a ser recuperada nos anos 1980, após o lançamento póstumo de sua autobiografia.

A sorridente madame Beudet, o refúgio da mulher perante as investidas de seu marido, é a sua imaginação mórbida. As técnicas utilizadas por Germaine são inovadoras e nos permitem mergulhar no inconsciente feminino como nunca antes foi possível.

Assim como ela, Germaine Dulac não se contentava em filmar apenas histórias engraçadas ou de amor, mas até antes de Georges Méliès entendia o cinema como ferramenta e brincava com todas as possibilidades oferecidas pela arte recém criada. Em 1923 lança o que é considerado o primeiro filme feminista do mundo, guardados os anacronismos, por explorar pela primeira vez o universo do inconsciente feminino.

A Sorridente Madame Beudet até hoje gera reflexões em estudiosos, interessados em entender a motivação da obra. Impressionista, o enredo gira em torno de uma dona de casa entediada, que encontra motivação em seus devaneios mórbidos em relação ao marido. Estamos em 2021, e seguimos admirados pelo viés crítico do filme, sendo ele feminista ou não.

Vale lembrar que, quando surgiu, o cinema não passava de entretenimento de massa, um lazer leviano para que o povo aproveitasse o pão e o circo. Era sim, um avanço científico de proporções inéditas, mas se acreditava que não passaria de uma moda efêmera e, dentro deste cenário, as mulheres eram não apenas muito bem-vindas, como atuavam plenamente em todas as funções, em pé de igualdade com os homens.

Como então é possível que tenhamos completo desconhecimento das pioneiras de uma arte que se tornou tão prestigiada e essencial em nossa sociedade? A resposta é muito simples: a História sempre foi escrita por homens. Sabemos então que, quando o dinheiro de Hollywood entra por uma porta, as mulheres saem pela outra, e este é o motivo exato pelo qual Alice Guy, Lois Weber e Germaine, por exemplo, foram apagadas dos registros e não ensinadas nas escolas.

A invisibilização da atuação feminina no cinema é sintomática dessa sociedade patriarcal, que não abre mão de seus privilégios de serem gênios, pioneiros, provedores, racionais e inovadores. A ideia de excluir, reiteradamente, as mulheres de campos diversos da sociedade é a violência velada que não ficou restrita ao início do século XX, o recorde de indicações ao Oscar, maior cerimônia de premiação do cinema, por exemplo, foi de 30%, em 2020. Será que isso significa que as mulheres não estão produzindo coisas boas o suficiente?

Conhecer o passado é entender o presente e planejar o futuro. Que sorte a nossa viver em um momento em que essa reparação histórica está em andamento e que, graças à internet e à uma crescente democratização do acesso à informação, temos a oportunidade de conhecer não só as mulheres responsáveis por criar e alterar para sempre a história do cinema, como suas obras.

Se quiser aproveitar a curiosidade que eu espero que este texto tenha gerado e conhecer mais sobre as contribuições de Alice, Germaine, Lois, e outras que não citei aqui, aproveite a cinelist criada pelo streaming do Telecine em homenagem aos 125 anos de cinema e maratone as Pioneiras do cinema.

Além dessa cinelist, na plataforma você encontra um catálogo com mais de mais de dois mil filmes de diversos movimentos, diretores e gêneros. O serviço oferece os primeiros 30 dias de acesso gratuitos.

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