“Montemos a câmera na rua, num quarto, observemos com paciência insaciável, treinemo-nos para contemplar nossos semelhantes em seus gestos mais simples”. Foram com essas palavras que o roteirista Cesare Zavatti, um dos nomes mais importantes do neorrealismo, descreveu as ambições e as origens do revolucionário movimento cinematográfico surgido na Itália ao fim da Segunda Guerra Mundial.

Marcado por uma guinada ideológica em suas narrativas e por uma transformação estética voltada para uma representação da realidade como ela é, o neorrealismo italiano foi responsável por influenciar o Cinema Novo brasileiro, a nouvelle vague francesa e diversos outros movimentos do cinema.

 

Cena de “Alemanha, Ano Zero” (1948), de Roberto Rossellini: gravações em meio aos escombros da guerra

Em ruínas após a violenta derrota do regime de Mussolini e com uma população colapsada pelos efeitos da guerra, o território italiano e sua devastadora realidade tornaram-se cenários para uma nova forma de se fazer cinema. Sem dinheiro ou glamour, mas com uma nova onda de talentosos cineastas como Roberto Rossellini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti, que buscaram retratar a desolação e o abandono de seu país de forma crua e objetiva, o neorrealismo italiano nasce como um contraponto à espetaculosa estética fascista e um inaugural representante do cinema moderno.

A principal ruptura com o cinema clássico passa pela gravação das cenas diretamente das praças, bondes e becos italianos, em meio às massas e fora dos estúdios responsáveis pelas grandes produções de escopo hollywoodiano que dominaram a indústria local nas décadas de 20 e 30.

O Cinecittà, principal centro de produção cinematográfica do país, que existe até hoje, havia sido bombardeado durante a guerra e não tinha mais condições ou recursos para realizar novas películas. O neorrealismo italiano surge, assim, também fruto de uma necessidade: não havia outra maneira de fazer filmes.

Esta escassez de orçamentos foi essencial na implementação de novas técnicas e formatos que geraram às produções uma atmosfera mais próxima da realidade. Desprovidas de investimentos, mas esbanjando criatividade, os filmes recorreram a uma série de escolhas para baratear seus custos, como a escalação de atores amadores para participarem das gravações, até mesmo como protagonistas; uso de luz natural e som ambiente; ausência de efeitos visuais e os já mencionados cenários naturais. Tais decisões não apenas tornaram financeiramente viáveis as realizações dos filmes, como contribuíram para levar às telas o povo e as calçadas italianas de maneira verossimilhante.

Nas ruas, longe dos sets, a câmera passava a não ter mais controle sobre tudo o que estava sendo gravado, movimentando-se em meio a multidões de transeuntes, retratando mendigos, crianças curiosas e civis em um aspecto cotidiano, banal, em um formato semelhante ao documental.

Além disso, o cinema como arte começou a inserir de forma muito natural em narrativas e histórias de personagens os traumas e as ruínas causados pela guerra, abordando temas muitas vezes sob um viés marxista, em que o povo precisava ser representado. A luta de classes, a falta de empregos e moradias, o caos urbano e o impacto gerado pelo descaso de governantes foram assuntos frequentes em filmes do movimento. As escolhas por tais temáticas contestadoras resultaram em muitos longas-metragens de atmosfera opressora, desiludida, com finais trágicos e pessimistas, mas também de imensa relevância histórica.

Inocência roubada

Alguns estudiosos classificam Obsessão, de Luchino Visconti, em 1943, como o filme inaugural do movimento neorrealista, enquanto outros acreditam que o debute ocorreu em Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, em 1945. Mas não há dúvidas de que um dos maiores expoentes do movimento, dentre inúmeras grandes obras lançadas na época, seja o clássico Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica.

A obra-prima sobre uma família quebrada financeira e psicologicamente em uma arruinada Itália pós-Segunda Guerra Mundial é tanto objeto de estudo para a linguagem do cinema como um emocionante retrato histórico.

Na trama, Antonio (Lamberto Maggiorani) consegue uma disputadíssima vaga de colador de cartazes em Roma, trabalho que exige a posse de uma bicicleta para que ele consiga se deslocar pela cidade com o material.  Entretanto, em condições financeiras difíceis após anos de desemprego, Antonio e sua esposa Maria (Lianella Carell) são obrigados a vender bens familiares para que ele possa retomar sua bicicleta que havia sido confiscada e assim não perder a rara oportunidade. Após a negociação, e esperançoso por um futuro mais digno para Maria e seus dois filhos pequenos, Antonio enfim começa o serviço, mas tem seu precioso item roubado logo no primeiro dia de trabalho, dando início a uma desafiadora e melancólica procura.

Cena de “Ladrões de Bicicleta” (1948), de Vittorio De Sica: angústia pelas ruas de Roma

Por meio da câmera de Sica, que leva o espectador para o centro de Roma junto de Antonio e seu carismático filho Bruno (Enzo Staiola), é possível testemunhar tanto o crescente desespero da dupla em busca da bicicleta, essencial para o sustento da família, como a dura realidade de grande parte da população italiana na época.

De uma claustrofóbica feira com milhares de itens para bicicletas, lotada de vendedores e transeuntes, até uma missa repleta de necessitados participantes, a jornada de Antonio e Bruno remete a cenas documentais sobre a sociedade italiana após a derrota na Segunda Guerra Mundial, e o fato de todos os atores do filme serem amadores só ressalta esta emulação da realidade.

Se tematicamente a trama do filme é uma consequência dos eventos causados pela guerra e o fascismo de Mussolini, esteticamente o neorrealismo de Vitoria de Sica é diametralmente oposto aos planos ensaiados, planejados e propagandistas de grande parte das produções nazistas alemãs de enaltecimento ao Terceiro Reich. Não há glamourização de personagens e cenários ou discursos otimistas sobre um futuro próximo.

Pelo contrário, à medida que o tempo passa e Ladrões de Bicicleta apresenta em cena verdades como uma massa de desempregados, ônibus lotados e uma série de personagens sem o mínimo de altruísmo, a complicada situação de Antonio e seu filho ganha contornos cada vez mais dramáticos.

Isto porque, impulsionada pela melancólica atmosfera em que se passa, a grandiosa e minimalista história do filme é mais do que tudo sobre a relação de um pai com seu filho. Angustiado por não conseguir reaver sua bicicleta, Antonio luta para não perder seus valores em sua empreitada pela cidade, usando da força quando necessário, e até mesmo da ajuda de uma vidente para ter de volta o que é dele por direito.

Mas a realidade, como o neorrealismo ilustra tão bem, é que os homens são falhos e que tempos difíceis geram ainda mais egoísmo e frustração. Assim como em Roma, Cidade Aberta; Alemanha, Ano Zero e outros longas-metragens do movimento neorrealista italiano, o final de Ladrões de Bicicleta é impactante por mostrar o indigesto e o desagradável tal como a vida de muitos sobreviventes foram naqueles anos.

Um lugar ao sol

Com a recuperação econômica da Itália e uma melhora nas qualidades de vida de boa parte da população, o neorrealismo italiano vai perdendo forças e tem no longa-metragem Umberto D., de Vitorio De Sica, em 1952, o que muitos teóricos consideram como um simbólico fim do movimento.

Os cineastas começam a adotar posturas mais otimistas, criando filmes que ainda relatavam os problemas do país, mas de uma forma mais leve e alegórica. Novos grandes nomes do cinema italiano, como Michelangelo Antonioni, Ettore Scola e o icônico Federico Fellini surgem nos anos seguintes, adaptando aspectos dos filmes neorrealistas para o contexto social de suas épocas, abordando muitas vezes temas mais individuais e romantizados.

Cena de “Milagre em Milão” (1951), de Vittorio De Sica: luz e mais leveza no movimento neorrealista

Um ótimo exemplo da mudança de tom do neorrealismo italiano é o divertido Milagre em Milão, também de Vittorio de Sica, que lançou esta tragicômica produção em 1951, três anos após seu melancólico Ladrões de Bicicleta. A trama acompanha um grupo de pobres italianos que constroem um assentamento e são liderados pelo benevolente Totò (Francesco Golisano), um solidário jovem que luta pelos direitos e necessidades da massa de indigentes.

Carregada de simbolismos, e agregando um tom fabuloso à sobriedade do neorrealismo, o filme emprega atores não profissionais, locações naturais, e faz duras críticas ao sistema capitalista. Por outro lado, o roteiro de Cesare Zavatti, parceiro de longa data de De Sica, também faz uso de pombas mágicas, músicas e um fantasioso e inesquecível final.

Em uma das mais emblemáticas cenas do filme, um grupo de pessoas literalmente corre de um lado para o outro em busca de um lugar ao sol para se proteger do frio. A hilária sequência ilustra de forma significativa o tom do filme, mostrando, de uma maneira muito mais descontraída, pobres personagens passando por uma séria necessidade.

O surgimento de novos diretores, a reconstrução da Itália após a guerra e a inclusão de novos artifícios e alegorias nos filmes posteriores ao neorrealismo geraram uma série de novas vertentes culturais nos anos que se seguiram, tornando o cinema italiano um dos mais férteis no mundo e inspirando gerações de cineastas.

Ladrões de Bicicleta, Milagre em Milão e outros grandes clássicos do neorrealismo italiano estão disponíveis para assistir no aplicativo do Telecine. Além de um vasto catálogo com mais de mais de dois mil filmes de diversos outros movimentos e momentos do cinema mundial, o serviço oferece ainda os primeiros 30 dias de acesso gratuitos.

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