Bastardos Inglórios, o Caçador de Judeus e La Lousiane: uma análise da estrutura discursiva em cenas-chave do filme

Discorrer sobre a importância de Bastardos Inglórios (2009) como um dos grandes expoentes modernos de um gênero permeado por obras marcantes no imaginário cinemático da cultura popular, hoje, dez anos depois de seu lançamento é um grande desafio.

Após já ser considerado por alguns um jovem clássico e sendo revisitado por diversas vezes, entre análises que suscitam desde discussões acerca da transgressão ao gênero, passando por reflexões do comportamento da narrativa dentro da filmografia e do próprio universo que Tarantino criou para seus enredos, Bastardos Inglórios carrega em seu núcleo discursivo um conjunto de signos únicos apresentados através de passagens memoráveis que conferem à obra uma força cinemática que se mantém intacta através dos anos. Porém, duas cenas chave sintetizam e fundamentam o tom, o estilo e a proposta retórica do diretor na construção da linguagem da forma e conteúdo da obra. São estas a cena de abertura, protagonizada pelo inesquecível vilão Hans Landa (Christoph Waltz), e a cena do jogo de cartas na taverna La Lousiane na metade da projeção.

Tais momentos condensam tudo que o Bastardos Inglórios pretende tratar e, mais importante, a forma como isso será apresentado ao espectador. Portanto, neste texto examinaremos como estas passagens acontecem e de que maneira elas servem ao propósito maior da narrativa.

Estudo de Cena 1: O caçador de judeus

Aparentemente a cena tem a função de introduzir dois dos grandes protagonistas da narrativa, o coronel Hans Landa, o caçador de judeus, e Shosanna (Mélanie Laurent), uma sobrevivente judia que busca vingança contra o exército nazista.

No entanto, a construção do general Landa, executada magistralmente por Waltz, fica muito mais latente dentro da miscelânea tarantinesca e é possível associarmos o personagem a duas grandes figuras simbólicas do arquétipo do vilão presentes no inconsciente cultural popular. Basta analisarmos a eloquência, erudição e até mesmo charme do Conde Drácula da célebre versão americana de 1931, eternizado pelo lendário Bela Lugosi. A ele, adicionamos o sadismo e o senso de humor sarcástico do personagem Coringa, o nêmesis dos quadrinhos Batman. O resultado é o perfil psicológico ideal do caçador de judeus. Assim, pode-se deduzir que a cena serve muito mais ao propósito de ditar o modus operandi da narrativa, sendo compreendida pelo clima de angústia ininterrupta, centrada fortemente na figura do general nazista

Desde o início da cena, Landa se mostra polido e tenta se portar amigavelmente. No entanto, Perrier LaPadite (Denis Ménochet) permanece tenso, pois já conhece o histórico do coronel nazista. É justamente nessa permanente tensão que o espectador embasa sua percepção do personagem, pois o trato e o modo de Landa se portar não condiz com a apreensão que o fazendeiro estampa em sua feição. Isto faz com que o mesmo seja assimilado como uma figura de caráter dúbio e manipulador, algo que rapidamente é consumado no decorrer da estruturação do diálogo entre os dois homens.

Bastardos Inglórios

Perrier LaPadite (Denis Ménochet) e Hans Landa (Christoph Waltz).

A cena tem sua própria estrutura de 3 atos, com arco narrativo que cresce conforme o arco do personagem central, neste caso, o coronel Landa. No terceiro ato, quando o oficial envolve completamente LaPadite em sua trama discursiva, ele apresenta sua verdadeira faceta exigindo a denúncia do esconderijo da família judia a quem o homem conferiu abrigo em sua residência. Ameaçado e encurralado, o fazendeiro finalmente, após um desgastante labirinto de angústia, cede e delata onde estão abrigados os judeus refugiados. Logo em seguida o oficial dá a ordem aos seus homens, que massacram todos impiedosamente. No entanto Landa permite que a garota Shosanna, a única sobrevivente da caça, fuja para que ele pudesse manter o jogo de perseguição que tanto aprecia.

Toda cena é desenvolvida para que funcione como uma espécie de síntese metafórica do que estará por vir na obra. Uma apresentação dos temas a serem tratados, dentre os quais estão a perseguição clássica entre gato e rato e o tema central de toda a filmografia do diretor: a vingança.

Porém, aqui a construção da motivação foca muito mais no algoz que na vítima. Soa como se a figura de Shosanna se manifestasse como holofote para denotar o sadismo de Landa, algo que necessita ser alimentado, como em todos os personagens de Bastardos Inglórios. Esse traço é e salientado durante toda a projeção.

Estudo de Cena 2: Massacre em La Lousiane

Entretanto, ainda mais profunda e elucidativa para o discurso fílmico é a cena da Taverna de La Lousiane. Para que tenhamos a dimensão de seu impacto nos alicerces discursivos é necessário retrocedermos algumas cenas.

Na trama, o exército britânico planeja um ataque decisivo ao exército nazista e a seu líder supremo, que poderá colocar fim na guerra em apenas uma ação. Sendo assim, o espectador é apresentado à operação através do general Ed Fenech (Mike Myers), que explica ao tenente Archie Hicox (Michael Fassbender) que ele deverá encontrar-se com Bridget von Hammersmark (Diane Kruger). A famosa atriz do cinema alemão é uma agente dupla a serviço da Inglaterra e, juntamente com os Bastardos, irá confabular sobre os detalhes do plano. Este, basicamente consiste em se infiltrarem na première de um filme sobre um herói de guerra nazista, na qual estarão presentes todos os homens do mais alto escalão do exército, incluindo possivelmente o próprio Führer. Dessa forma, Bridget seria a ponte entre o bando, o tenente e a première.

Porém, a escolha do local, uma pequena taverna chama La Louseana situada no interior da França, será a primeira grande batida do roteiro na sequência, o elemento catalizador. E exatamente na cena seguinte o Tenente Aldo (Brad Pitt), líder dos Bastardos, inicia um diálogo com Archie reclamando sobre a escolha do local de encontro, alegando que caso haja necessidade de um combate, aquele ambiente dificultaria muito a ação.

Na progressão da cena, o oficial inglês assimila as alegações de Aldo e vai até Stiglitz e o indaga sobre sua fama de assassino impiedoso de oficiais do alto escalão nazista, incluindo seus métodos frios de execução. Até aqui, dois elementos importantes foram inseridos para potencializar o efeito catártico que a sequência da Taverna pretende incitar no expectador.  Primeiro a escolha equivocada da localização do encontro, segundo a insegurança acerca da intempestiva personalidade de Stiglitz, a qual sintetiza exatamente o perfil psicológico geral do bando, criando desta forma a atmosfera de inquietude frente à iminência de um desastre.

O diretor articula seus personagens com motivações legítimas para que estes sofram posteriormente e sejam os profetizadores de seus próprios declínios, enfatizando a ironia de seus infortúnios. Ao final da cena, o oficial aliado tenta convencer o grupo que a ideia da atriz foi organizar a reunião naquele local por se tratar de uma taverna simplória em uma pequena cidade, evitando assim a presença de qualquer soldado alemão.

Bastardos Inglórios

Nesse momento, Bastardos Inglórios apresenta um corte sagaz. O primeiro elemento a ser identificado no plano seguinte é um homem trajando um uniforme nazista, mantendo até mesmo na estrutura do filme, por meio de uma montagem intelectual que amarra a trama através da contraposição de ideias, o tom irônico e oblíquo do conceito narrativo que a obra propõe.

A partir deste ponto, com seus prenúncios devidamente concretizados, ele conduz a cena aos moldes dos grandes métodos hitchockianos de construção de tensão narrativa. O diretor mantém o humor irônico seja na coincidência da comemoração da descoberta da paternidade de um soldado acontecendo naquele momento, seja no jogo de adivinhação, cujo objetivo é desmascarar o que o outro finge ser, uma metáfora para o tema central da cena.

Apesar do latente nervosismo, todos os personagens riem o tempo todo na conversa com o major Dieter Hellstrom (August Diehl), que estava no bar. Tal qual Landa, o oficial antagoniza a passagem de forma magistral, provocando o grupo disfarçado.  O que se segue são investidas do oficial usando o jogo de adivinhação para mostrar suas habilidades investigativas e evidenciar para o grupo de forma cínica que ele não confia no que estes dizem.

Bastardos Inglórios

Porém, não demora para que o oficial inglês perceba a situação e mude o tom da conversa, pedindo para que o major se retire da mesa pois o grupo deseja ficar a sós. Hellstrom insiste no jogo psicológico e brinca com os nervos de seu interlocutor, se recusando inicialmente a se retirar. Posteriormente ele reconhecer sua intromissão e oferece uma rodada de whisky para o grupo na forma de despedida e pedido de desculpas. É então que um gesto lhe rouba atenção: o icônico plano dos dedos, que entrega completamente o disfarce do bando.

Tarantino estica a duração do plano para que o espectador perceba, através do semblante do oficial da SS, que algo finalmente mudou e o inevitável se aproxima. No seguimento da cena, após finalizar seu drink, Dieter anuncia que já sabe que seus interlocutores são impostores. Assim chegamos ao impasse mexicano, outro símbolo recorrente do inconsciente cinéfilo do diretor, que remete aos grandes westerns. Este culmina em um massacre extremamente gráfico, representando o momento de catarse discursiva em que a forma e o conteúdo estão no ápice de sua sintonia.

Entretanto, a função primordial desta sequência está para além de um espetáculo de violência. Ela cumpre grande papel retórico, colocando o limite das possibilidades narrativas em outro patamar. O alongamento do senso de catástrofe a esta altura já é um signo latente e seguirá se intensificando, sequência a sequência, plano a plano, até atingir seu clímax na grande chacina do cinema.

Fazendo este exercício de análise isolada das cenas, algumas conclusões podem ser abordadas. Entre elas está o fato de que ambas as passagens, funcionam perfeitamente como poderosos curtas-metragens independentes do, pois apresentam todas as principais características de uma peça de curta duração audiovisual. Ali estão os arcos dramáticos de trama e personagens, marcações precisas em diálogos e na estrutura do roteiro, forças de antagonismo instigantes, personagens complexos com motivações e medos reais, poderosas concepções imagéticas de planos e enquadramentos inesquecíveis, além do elemento sonoro responsável por adicionar camadas essenciais para o funcionamento da lógica narrativa dentro deste microcosmos.

Por outro lado, não é possível conceber Bastardos Inglórios seccionando tais cenas do resto da projeção. Além de marcarem, o começo e a metade do filme, respectivamente, elas são essenciais para fundamentar a cerne da obra. Nestas cenas estão contidas informações que fazem a trama andar, seja em função da apresentação de um vilão ou para marcar o fim de um arco dramático do roteiro. Também estão ali fontes de noções discursivas tanto de forma quanto de conteúdo, que melhor representam o conceito do que o diretor quis materializar ao tratar do mais famoso conflito global da história através de sua ótica e estética icônica.

A fotografia de Bastardos Inglórios é abordada em detalhes no curso Direção de Fotografia, ministrado pelo professor Kiko Lourenço. Mais informações no link abaixo.

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