Uma lembrança de infância que tenho vívida em minha mente é ir à vídeo locadora às sextas-feiras e ficar eufórico em meio a tantas opções. Naqueles tempos, antes do advento da Internet e morando em uma cidade do interior, a vídeo locadora era a minha janela para o mundo. Enquanto o espectador médio hoje passa horas diante do catálogo da Netflix e termina por não assistir nada, eu passava cerca de… bem, quando criança não se tem uma boa noção de tempo, enfim, todo final de semana era de praxe levar um dos seguintes filmes para casa: Em Busca Do Vale Encantado (1988), História Sem Fim (1984), Chico Bento Óia A Onça (1990), e Brinquedo Assassino (1988). Wait, what? Aparentemente este último não deveria estar na minha lista aos seis anos de idade, mas estava. Quando eu via a capa da fita, a palavra “BRINQUEDO” falava mais alto do que a palavra “assassino”, com a foto de um boneco de camisa listrada e macacão jeans semelhante à roupa do boneco do Fofão, que por sinal eu também tinha. Não importa se eu não tinha idade para ver um filme como este, e o fato de a fita em questão estar longe da sessão dos filmes infantis, se meu pai permitiu é o suficiente. O cenário estava pronto para me traumatizar para o resto da vida: eu morava num casarão onde fenômenos estranhos ocorriam, enquanto eu tinha um boneco do Fofão, minha irmã tinha uma boneca da Xuxa, ambos notórios por teorias da conspiração e por matar criancinhas. Resultado: me tornei fã de filme de terror.
Brinquedo Assassino começa com a morte de um serial killer, Charles Lee Ray (o nome é uma mistura entre Charles Manson, Lee Harvey Oswald e James Earl Ray, o último é responsável pela morte de Martin Luther King, e o anterior à morte do presidente John F. Kennedy), numa loja de brinquedo, em seus últimos suspiros, Ray consegue transferir sua alma para um boneco, que acaba indo parar nas mãos de Andy em seu aniversário de 6 anos, na mesma noite, a babá que tomava conta do menino é brutalmente assassinada, as únicas evidências apontam para o boneco, o absurdo não é levado em conta pela polícia, e este evento transforma a vida de mãe e filho envoltos neste mistério.
Claro que eu não possuía uma visão crítica vendo este filme aos 6 anos de idade, revendo-o hoje em dia a primeira coisa que me chama atenção é propaganda massiva em cima deste produto, os bonecos Good Guy. A loja onde Charles Lee Ray transfere sua alma para o boneco é repleta deles; Andy prepara um cereal com um Good Guy na embalagem; o menino se veste como um Good Guy; e em seu aniversário, ganha brinquedos (acessórios) com a marca Good Guy; e além de tudo isso, a televisão exibe a maior propaganda que um brinquedo poderia ter nos anos 80 e 90, um programa infantil e um desenho animado. He-Man, Tartarugas Ninja, Pokémon, Transformers, Comandos Em Ação, são exemplos de desenhos animados criados especificamente como uma massiva campanha de marketing cujo único objetivo era: Vender brinquedos. O Brasil não era tão diferente dos EUA, apresentadores de programas infantis também eram transformados em brinquedos – a exemplo do Fofão, Xuxa, e Angélica – ou apenas estampavam a embalagem – a exemplo do Gugu e Eliana dos dedinhos –. Hoje em dia este cenário continua o mesmo, porém os valores mudaram, por exemplo, a Hasbro não investe mais em desenhos animados, mas milhões e milhões de dólares para Michael Bay realizar a franquia Transformers que todos “adoram”.
Claro que Brinquedo Assassino não é um filme feito para vender bonecos Good Guy, ou My Buddy Doll (linha de brinquedos que inspirou o design dos Good Guys), pois se este fosse o intuito, teria falhado miseravelmente, o intuito era criar uma atmosfera de terror, e o faz muito bem. A cena do assassinato da babá de Andy não revela muito, as únicas evidências do crime são impressões na mesa, deixadas por sapatos Good Guy, Andy os usa mas não há rastro de pó branco em sua sola, e ao incriminar o boneco, a primeira reação tanto da mãe (Catherine Hicks) quanto do policial (Chris Srandon) é: “este menino está louco”. E por boa parte do filme, Chucky não interage muito, deixando a possibilidade de que Andy possa sofrer algum tipo de esquizofrenia, Chucky lhe fala sem mover os lábios, é carregado ao invés de andar com as próprias pernas, e as alegações de que o boneco tenha vida própria o levam a ser internado. Inicialmente, Brinquedo Assassino teria essa premissa, deixando dúbia a natureza dos assassinatos, porém, o roteiro foi mudado para se tornar mais palatável, isso pode ser constatado se excluirmos a cena inicial onde Charles Lee Ray é baleado e se esconde na loja de brinquedos. A partir da metade do filme, Karen, mãe de Andy, e o policial cético, Mike Norris, descobrem da pior forma possível que o brinquedo realmente está vivo, pois o mesmo está funcionando há dias sem as baterias.
Depois de se revelar para o público e para os personagens, Chucky procura Dr. Morte, seu guia espiritual, e o tortura a partir de um boneco vodu. Este é outro detalhe ao qual eu não me atentara quando criança, mas hoje penso que os praticantes de vodu podem ter se sentido mal representados neste filme, esta cena em questão, e alguns desenhos do Pica-Pau contribuíram com a ideia de que a religião vodu se resume em fazer bonequinhos e espetá-los, porém os objetos em questão podem ser usados com propósito positivo, como amuletos de sorte, saúde, amor e proteção, tudo depende da intenção de quem o usa, muito provavelmente o Dr. Morte fizera um boneco de si mesmo com o intuito de proteção, mas Chucky o encontrou e o usou com outras finalidades.
E por falar em bonecos vodu, algo que nunca passou pela minha cabeça, nem mesmo após ler as inúmeras creepy pasta sobre as mortes de crianças ligadas à bonecas da Xuxa e do Fofão, é que talvez a história de Chucky possa ter sido inspirada em caso real. Existem inúmeros relatos na Internet sobre bonecos amaldiçoados, cada um mais assustador que o outro, porém eu quero focar em apenas um, o do boneco Robert, que possui algumas semelhanças com o filme Brinquedo Assassino. O boneco pertencia a Robert Eugene Otto, de Kay West, na Flórida (vou me referir à criança pelo seu segundo nome, para não gerar confusão), Robert é um boneco de 90cm preenchido com palha, vestindo uma roupa de marinheiro, e com cabelo de Eugene, foi dado ao garoto pela servente da família em 1906. Vinda da Bahamas, a servente era vítima de maus tratos pelos patrões, e havia perdido seu próprio filho enquanto lhe fora ordenada que cuidasse de Eugene, o que eles não contavam, é que esta servente tinha conhecimentos em práticas vodu. O garoto ficou entusiasmado com o boneco, e o batizou com o seu próprio nome, os pais, no entanto, perceberam que havia algo errado com Robert, eles ouviam seu filho conversar consigo mesmo à noite, com duas vozes distintas, às vezes acordava no meio da noite aos gritos, e às vezes acordava com os móveis revirados, alegando que o boneco o fizera. Outros brinquedos de Eugene apareceram mutilados, e vizinhos diziam ter visto Robert os observando pelas janelas, mesmo sabendo que o boneco estava em um lugar completamente diferente, até mesmo os pais de Eugene viam o boneco se mover no canto dos olhos, visitantes juravam ter visto o boneco piscar os olhos. O boneco fora deixado no sótão, Eugene crescera, e quando seus pais faleceram, ele e sua esposa se mudaram para a casa onde passara a sua infância. Visitas diziam ouvir risadas, passos, e movimentos no sótão, pedestres que passavam em frente à casa viam Robert os observando da janela do sótão, as visões eram tão frequentes que as pessoas atravessavam a rua ao passar em frente à casa. Eugene encontrara Robert numa cadeira de balanço no andar principal inúmeras vezes, sempre o devolvia ao sótão, mas o boneco voltava à cadeira de balanço. Eugene morreu em 1974, sua casa foi vendida com todos os pertences, a nova família tinha uma filha de 10 anos que adotou Robert para si. Não demorou muito para que seus bonecos aparecessem mutilados, ela tivesse pesadelos, e a atacasse em inúmeras ocasiões, quando o cachorro da família foi encontrado quase enforcado, pelo boneco segundo a menina, Robert foi devolvido ao sótão. Mesmo depois de adulta, ela ainda atesta que o boneco tentara mata-la. Robert, o boneco amaldiçoado está hoje no Museu Fort East em Key West, em uma cristaleira de vidro, a parede atrás do boneco está repleta de cartas de desculpas dos visitantes que tiraram a foto de Robert sem sua permissão.
Robert inspirou um filme em 2015, e se você conseguir enxergar alguma coisa neste trailer, por ser muito escuro, verá que o filme não tem o mesmo charme de Brinquedo Assassino. Feito no final dos anos 80, os efeitos especiais ainda surpreendem, utilizando-se de várias técnicas como animatrônico por controle remoto, pessoas pequenas, e às vezes até crianças caracterizadas como Good Guy. Lembro de quando criança ter identificado um dos momentos em que uma pessoa pequena foi usada, aquilo me fez rir, mas sem perder o encanto.
Atenção aos 1:36 deste vídeo.
Lançado em 9 de novembro de 1988 (mesma data de morte de Charles Lee Ray no filme), Brinquedo Assassino foi lançado em meio a muita polêmica, tanto que a MGM o renega, os filmes seguintes foram produzidos pela Universal (o estúdio, não a igreja) que adquiriu os direitos. Uma multidão protestou contra o filme na entrada do estúdio da MGM, pedindo que o filme fosse banido, pois poderia incitar violência em crianças, o protesto estava sendo televisionado enquanto o produtor David Kirschner estava assistindo atônito, Jeffrey Hilton, que trabalhava com Kirschner na MGM disse que poderia resolver o assunto em 10 minutos, ele falou com o líder dos protestantes e a multidão se debandou. Até hoje não se sabe se Hilton usou diplomacia ou ameaça nesta ocasião.
Em outro caso, em 1992, a jovem de 16 anos Suzanne Capper morreu por falência múltipla dos órgãos e por ter 80% do seu corpo queimado. Antes de morrer, Capper relatou que fora sequestrada e torturada. O caso foi investigado e os responsáveis pelo crime foram presos, no tribunal foi relatado que as sessões de tortura começavam com uma gravação de uma música rave ouvida por fones de ouvido no último volume, a música repetia a frase “I’m Chucky, wanna play?” jornais sensacionalistas acusaram Brinquedo Assassino 3, de incitar este tipo de violência.
Em 1993, o menino de 2 anos James Patrick Bulger foi pego e torturado por duas crianças, ambas de dez anos de idade. A investigação da polícia mostrou que Brinquedo Assassino 3 foi alugado pelo pai de um dos autores na semana anterior ao crime, jornais sensacionalistas ingleses alegaram que o filme incitou o ato de violência, e pediu para que fosse incluído na lista de “video nasties” (lista de filmes populares em vídeo locadoras que os jornais ingleses os classificavam como inadequados. A lista inclui clássicos como Holocausto Canibal, Sexta-Feira 13, Suspiria, O Massacre Da Serra Elétrica, Laranja Mecânica, e O Exorcista), em resposta, o diretor Tom Holland defende sua obra das acusações dizendo que o espectador de filmes de horror só podem ser influenciados pelo conteúdo se já forem pessoas desequilibradas. Este é um assunto que merece ser trazido à tona.
À direita: Suzanne Capper; À esquerda: James Bulger. Em ambas mortes os jornais ligaram ao filme Brinquedo Assassino 3, como um incitador. Brinquedo Assassino gerou várias sequências: Brinquedo Assassino 2 (1990), que tinha melhores efeitos, mais gore; Brinquedo Assassino 3 (1991, que me incomodou no salto temporal – em um intervalo de um ano entre as produções, o personagem Andy Barclay envelhecera uns dez anos. Rony You suavizou um pouco a franquia, trouxe uma pitada de humor negro em A Noiva De Chucky (1998), que eu particularmente adoro. A franquia voltou, então, ao seu criador, Don Mancini, que cagou O Filho De Chucky (2004), que eu só o vi nos cinemas pela boa campanha de marketing que nunca mostrava o filho, e pelo website (que não está mais no ar) que continha um joguinho onde você comandava Chucky por uma caixa de texto.
A Maldição De Chucky (2013) foi um dos filmes mais aguardados daquele ano, desde que vi a primeira notícia no dia 6 de janeiro daquele ano, dizendo que Don Mancini traria o horror de volta à franquia, e cumpriu sua palavra: o cenário estava preparado para a volta de Chucky às telonas, mas foi novamente cagado com o horroroso O Culto De Chucky (2017), novamente dirigido por Don Mancini, com efeitos especiais e uma direção de arte pavorosa, e um roteiro fuleiro. Mas pelo menos eu dou o braço a torcer, Brinquedo Assassino é uma das poucas franquias, pelo que eu me lembro, que continua ao longo de oito filmes sem um reboot ou prequel.
Eu estava errado em outra questão, bonecos do Chucky, Tiffany, e Glen foram comercializados. Eu me deparei com um deles em uma galeria comercial no Rio de Janeiro, um boneco feio e cabeçudo de 30cm de altura, por R$ 500,00. Não comprei e não me arrependo disso, mas se você, leitor, sente que precisa deste boneco em sua coleção, é possível encontrar alguns modelos bem feitos pelo Mercado Livre. Chucky também foi personagem de uma hilária pegadinha do Silvio Santos, e surpreendentemente, o personagem foi tema de uma passeata em comemoração aos 20 anos de sua existência (2008), em que a Times Square em Nova York foi tomada por Chuckys.
Brinquedo Assassino marcou positivamente a minha infância, pois, foi responsável por me apresentar aos filmes de terror oitentista. Logo depois de descobrir esta pérola, adicionei à lista de filmes para alugar aos finais de semana clássicos como Sexta-Feira 13, Cemitério Maldito, It – Uma Obra Prima Do Medo, etc. Por mais que o filme tenha suas falhas, e poderia ser muito melhor se aprofundasse nos temas que mencionei anteriormente (a propaganda massiva, e a possibilidade de esquizofrenia em Andy), o filme ainda tem um apelo: um personagem tão memorável que hoje faz parte do panteão dos serial killers do cinema.