Aclamado em vários dos festivais e premiações de 2002, incluindo quatro indicações ao Oscar de 2004 (diretor, roteiro adaptado, edição e fotografia), Cidade de Deus (2002) conta a história da criação da favela do mesmo nome no Rio de Janeiro durante as décadas de 1960 e 1980. 

Dirigido por Fernando Meirelles e Katia Lund, o longa segue a história da favela pelos olhos de Buscapé (Alexandre Rodrigues) desde os primórdios com o Trio Ternura e seus assaltos a caminhões de gás, até a guerra entre Zé Pequeno (Leandro Firmino) e Mané Galinha (Seu Jorge) que dividiu a comunidade e é inspirada em fatos reais.

A história é contada em várias camadas, ela vai e volta do passado para contextualizar um presente caótico e cheio de violência mas sem se perder dos personagens. Com um roteiro afiado e uma fotografia que destaca claramente onde no tempo você está sem tirar o foco da narrativa, Cidade de Deus trabalha perto da perfeição suas imagens e som.

A guia dos atores

A tentativa de contar a história de uma favela tão conhecida e brutalizada quanto a Cidade de Deus não poderia ser fácil e o filme até hoje está envolto de polêmicas, seja com os atores ou durante a produção. Mas uma coisa era certa: para que o filme tivesse o mínimo de autenticidade e credibilidade, seriam necessários atores que trouxessem em si a realidade da favela e foi aí que Kátia Lund se tornou fundamental ao andamento do longa. 

O foco do trabalho da cineasta foi com os atores: “Nós tínhamos um coordenador que ligava para as entidades (ONG’s) e convidava os interessados a participar, em troca de lanche e vale-transporte, de um curso de cinema criado por nós” afirmou Kátia Lund em entrevista à época do lançamento do filme. Durante os cursos era incentivada sempre a improvisação, tentando deixar as falas e ações o mais natural possível.

Foram feitas mais de 2.000 entrevistas e selecionados 200 atores entre crianças e adolescentes. Um dos maiores trunfos do filme é exatamente como esse trabalho intenso com os jovens atores faz com que acreditemos que eles não estão atuando, que eles estão realmente passando por aquelas situações.

Cidade de Deus entrou no imaginário popular com falas como “Dadinho é o caralh*, meu nome é Zé Pequeno, p*rra!” e, assim, afirmou para o mundo como as favelas no Brasil operam e vivem, em banhos de sangue e drogas. Mesmo a história sendo baseada em fatos reais, muitos moradores de favela se sentiram mal representados pelo longa. 

A mais nobre manifestação cultural da fome é a violência

Essa frase está no manifesto escrito por Glauber Rocha em 1965 intitulado “A Estética da Fome“, onde ele explora a ideia de que “uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora”.

Em uma cena, Zé Pequeno vai dar uma lição nos garotos da caixa baixa que haviam roubado uma padaria e a brutalidade com que Zé trata os garotos e os faz escolher entre levar um tiro na mão ou no pé já seria o suficiente para exemplificar a crueldade daquele lugar. Mas, em seguida ele entrega a arma para o Filé (Darlan Cunha), uma criança que vê nele a única maneira de sobreviver na favela, e pede pra ele escolher um dos meninos para matar. Isso deixa claro que ali não existem mocinhos e fica claro que o diretor almeja emular essa violência como necessária mas ela transparece como gratuita e vazia. 

Um ano antes do lançamento do filme , em 2001, a crítica e pesquisadora de cinema Ivana Bentes escreveu um artigo defendendo a ideia de que vários longas vinham sendo feitos trazendo temas do Cinema Novo como a fome e a violência – aos quais Glauber Rocha se referia no seu manifesto, mas que essas histórias careciam de uma denúncia real e efetiva sobre a sociedade brasileira. Ao invés disso, esses filmes se preocupavam mais com a cosmética ao redor da fome trazendo imagens belíssimas, como vemos nos filmes Central do Brasil (Walter Salles, 1998) e Eu, Tu, Eles (Andrucha Waddington, 2000), numa situação rasa de pensamento.

Com a estreia de Cidade de Deus fica ainda mais em evidência a crítica que havia sido feita no ano anterior por Ivana Bentes, e ela revisita o tema então em um novo artigo citando o longa. Um filme que explora magistralmente a sua fotografia e som, propondo uma imersão dentro daquela comunidade com aquelas personagens mas nunca deixando o espectador desconfortável o bastante para questionar qualquer coisa que acontece ali. Seguimos como Buscapé, um estrangeiro dentro da sua própria terra, onde os eventos não necessariamente o abalam, eles simplesmente existem no mesmo lugar. 

No final do filme, enquanto tira as fotos de Zé Pequeno com os policiais recebendo propina e em seguida os mesmos  matando o chefe da boca, Buscapé fica em dúvida sobre qual foto vender ao jornal – os policiais aceitando o dinheiro do tráfico ou Zé Pequeno estirado no chão coberto de sangue – e diz: “Uma foto podia mudar a minha vida mas, na Cidade de Deus, se correr o bicho pega e se ficar o bicho come”. Esse seria o possível momento de uma tomada de consciência onde Buscapé entenderia na pele que tudo que acontece na favela não acontece ao redor dele, e sim com ele também. Ele faz parte desse mundo e cabe a ele também trazer luz às atrocidades praticadas ali, mas não é isso que acontece. Ele opta pelo caminho mais fácil, e mais lucrativo, se distanciando cada vez mais da sua própria realidade.

Buscapé só consegue sua grande chance como fotógrafo quando deixa um rolo de negativos com o estagiário do jornal e uma jornalista vê as fotos que ele tirou do Zé Pequeno e seu bando, por pura sorte. Talvez essa nem fosse a ideia dos realizadores, mas fica tristemente evidenciado que não só a sobrevivência, mas a existência para fora da favela, é quase um sonho utópico.

A fotografia de Cidade de Deus é abordada em detalhes no curso Direção de Fotografia, ministrado pelo professor Kiko Lourenço. Mais informações no link abaixo.

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