“Se vocês se interessam por histórias com final feliz, é melhor ler algum outro livro”. A primeira frase da saga Desventuras em Série, composta por 13 livros lançados entre 1999 e 2006, é tanto uma coerente introdução à sombria trama dos irmãos Baudelaire, como um aperitivo da excêntrica narrativa de seu criador Daniel Handler, sob o pseudônimo Lemony Snicket, que constantemente alerta a seus próprios leitores sobre os infortúnios que irão percorrer as próximas páginas. Traduzida para mais de 40 países e com cerca de 60 milhões de exemplares vendidos pelo mundo, o sucesso de Desventuras em Série se deve não apenas aos instigantes mistérios envolvendo a família Baudelaire, mas principalmente a essa narrativa soturna e ousada para uma trama voltada a um público infanto-juvenil.

“Se os Baudelaire estivessem passando pelo o que estamos vivendo agora, eu certamente estaria junto deles”, disse o criador Daniel Handler em entrevista exclusiva ao Cinemascope realizada por videoconferência. Morando em São Francisco, na Califórnia (EUA), com a esposa e também escritora Lisa Brown, Handler afirmou estar lidando com a pandemia e suas aflitantes consequências por um dia de cada vez, e traçou um paralelo entre realidade e ficção: “Ao criar estes personagens, me inspirei em pessoas íntegras e corajosas que conhecia. Os Baudelaire aprenderam a perseverar, pois perderam seus pais muito cedo e, mesmo sendo jogados em um mundo de aflições, já tinham forças suficientes para lidar com situações muito mais difíceis que jamais poderiam imaginar que um dia enfrentariam. Em momentos repletos de medo e pânico como os que estamos passando agora, acredito que podemos encontrar algo a mais dentro de nós mesmo para fazer o que é certo, assim como eles.”

A saga acompanha a sinuosa jornada de Violet, Klaus e Sunny Baudelaire que, após perderem os pais em um incêndio que destruiu suas casas, passam por uma infinidade de aventuras traumatizantes enquanto fogem do Conde Olaf e seus ajudantes, ansiosos em colocar as mãos na herança das crianças. Ao longo dos livros, os Baudelaire perdem amigos, novos lares, são incriminados, presos e por vezes separados uns dos outros, mas graças ao insaciável conhecimento de Klaus, à engenhosidade de Violet, e à união entre eles, os irmãos, mesmo sob a tutela de adultos irresponsáveis e medrosos, têm êxito em superar os planos malignos do Conde Olaf a cada capítulo.

Desventuras em Série

Os irmãos Baudelaire em sua antiga casa destruída por um misterioso incêndio. Arte: Brett Helquist

Desventuras em Série e a pandemia

As semelhanças entre eventos da fictícia obra de Handler e o pandêmico cenário atual não são poucas. Temas como o respeito à ciência e a valorização do conhecimento, tão desprezados ultimamente, são explorados de forma lúdica e recorrente na odisseia dos Baudelaire, que escapam de diversas desventuras muitas vezes por conta de ideias embasadas em livros ou experimentos.

No sétimo livro da saga, A Cidade Sinistra dos Corvos, por exemplo, as três crianças chegam a uma cidade onde as invenções são proibidas, as bibliotecas não têm livros e o jornal regional não para de divulgar notícias falsas. Para piorar, o ignorante Conde Olaf (que certamente aprovaria o uso de frases como “eu não sou um coveiro” diante de uma tragédia), é responsável pela incriminação de Violet, Klaus e Sunny por um assassinato, levando toda a ingênua população da cidade e seus ineptos governantes a condená-los.

Segundo Handler, assim como nas adversidades enfrentadas pelos Baudelaire, momentos desafiadores e incertos como os de agora são uma prova de que fazer o que é certo nem sempre é seguir o caminho mais fácil, e muitos supostos líderes podem se aproveitar disso. “Se você está com medo, é muito tentador seguir quem faz um tipo de discurso egoísta e ganancioso. A ideia de que você pode culpar alguma pessoa sem pensar, ou de que há uma conspiração acontecendo, é muito mais fácil. O difícil é o que precisamos estar fazendo agora: ouvir os cientistas, mudar nosso próprio comportamento, nos isolar de nossas pessoas favoritas, não ir a nossos lugares preferidos… a democracia requer participação, e se você não participa e não faz o que é certo, as consequências virão. Precisamos nos certificar de que não estamos tomando o caminho fácil porque estamos com medo, mas de que estamos dispostos a tomar decisões muitas vezes desafiadoras, porém necessárias.”

Desventuras em Série no cinema

As diversas desventuras enfrentadas pelos Baudelaire a cada livro são repletas de personagens e lugares singulares e caricatos, que estimulam a imaginação e criam uma atmosfera própria para cada novo perrengue apresentado. Há, por exemplo, o tio Montgomery Montgomery, que é fascinado por répteis e os abriga em sua própria mansão; a estilosa sexta consultora financeira mais importante da cidade, Esmé Squalor, cuja única preocupação é em estar in; a já mencionada Cidade Sinistra dos Corvos, que funciona sob um absurdo livro de regras de conduta seguido à risca por seus estúpidos habitantes; e muitos outros curiosos elementos e narrativas, liderados pelo carismático trio protagonista, que tornam Desventuras em Série um material riquíssimo para adaptações audiovisuais.

Desventuras em Série

Sunny (Kara Hoffman), Violet (Emily Browning) e Klaus (Liam Aiken) Baudelaire no filme “Desventuras em Série” (2004)

A primeira delas aconteceu há mais de 15 anos com um divertido longa-metragem dirigido por Brad Silberling (Cidade dos Anjos), que contemplou os primeiros três livros da saga, O Mau Começo, A Sala dos Répteis e O Lago das Sanguessugas.  Grande nomes como Meryl Streep, Jude Law e Jim Carrey, em uma performance marcante como o Conde Olaf, compuseram o elenco do filme, enquanto um outro timaço liderou a produção da obra: Emmanuel Lubezki (Gravidade) como diretor de fotografia; Thomas Newman (Beleza Americana) na trilha sonora e Colleen Atwood (Chicago), no figurino.

Além disso, lançado no final de 2004, o filme também era considerado mais uma aguardada adaptação cinematográfica de obras literárias de sucesso, que estavam em alta na época com a conclusão da vitoriosa trilogia O Senhor dos Anéis e a empolgação com a franquia Harry Potter, que crescia exponencialmente a cada novo lançamento nos cinemas.

Mas apesar da produção encorpada e uma recepção relativamente positiva da crítica, Desventuras em Série não passou nem perto de alcançar o desempenho comercial esperado. Com um orçamento considerável de cerca de 140 milhões de dólares , o filme fez apenas U$ 30 milhões em seu fim de semana de estreia nos EUA e saiu de cartaz com um total de U$ 211 milhões arrecadados mundialmente (o primeiro filme de Harry Potter fez 978 milhões de dólares em sua bilheteria global).

Seja por fatores como uma certa correria do roteiro ao adaptar três livros em único filme, deixando pouco espaço para uma maior imersão no peculiar universo da história; ou mesmo por um estranhamento do público ao tragicômico, mórbido tom da saga, a estreia dos Baudelaire nos cinemas não empolgou como se esperava e nunca ganhou uma continuação nos cinemas.

“Acho que nem todas as pessoas envolvidas com a produção daquele filme estavam empolgadas, mas da minha perspectiva de bastidores, foi ótimo poder ver alguns artistas renomados, com vasta experiência, trabalhando duro no projeto. Sobre a direção de arte, por exemplo, acredito que quando alguém já participou de inúmeros filmes e fez zilhões de trabalhos, pode ser tentador relaxar e pensar coisas como ‘eu já fiz isso antes, eu sei fazer isso’, então poder presenciar tantas pessoas talentosas se animando a criar coisas grandes e novas que eles ainda não haviam tentado antes foi muito bom”, disse Handler, que confessou não ter se preocupado se as histórias de Desventuras em Série eventualmente ganhariam novas adaptações: “Acho que fazer uma sequência horrível é muito pior do que não fazer sequência nenhuma.”

Netflix

Dez anos depois da primeira e única empreitada dos Baudelaire nos cinemas, o início de uma nova adaptação para os livros de Desventuras em Série foi confirmada em 2014. Ainda começando a se tornar a gigante empresa global de streaming que é hoje, a Netflix já havia lançado naquela época as primeiras temporadas de séries originais como House Of Cards e Orange Is The New Black, e buscava uma atração de peso voltada ao público infantil a fim de incrementar e diversificar seu catálogo em plena expansão. A empresa entrou em contato com Handler, negociou os direitos de adaptação de uma nova série sobre os Baudelaire com a Paramount, e assim deu início a uma de suas melhores produções originais até hoje.

Assim como no longa-metragem de 2004, uma experiente e habilidosa equipe de produtores e artistas foi chamada para o desenvolvimento da série, começando pelo próprio autor Daniel Handler, que atuou como produtor executivo e roteirista. Barry Sonnenfeld (A Familía Addams), grande entusiasta dos livros, que havia sido demitido da produção do filme, teve sua segunda chance com a saga e dirigiu vários episódios da nova adaptação, enquanto o veterano Bo Welsch (Edward Mãos de Tesoura), quatro vezes indicado ao Oscar, ficou a cargo do espetacular design de produção e também foi diretor de alguns episódios. E dentre outros relevantes colaboradores, é impossível não destacar Neil Patrick Harris (How I Met Your Mother), que interpretou uma divertidíssima nova versão do Conde Olaf e também foi um produtor executivo essencial da atração.

Desventuras em Série

À esquerda: Klaus (Louis Hynes), Sunny (Presley Smith) e Violet Baudelaire (Malina Weissman) na nova adaptação de “Desventuras em Série”

Com mais liberdade para explorar o humor ácido dos livros e sem correria para espremer boa parte da história em um filme de duas horas, Desventuras em Série foi lançada no catálogo da Netflix em janeiro de 2017, e o resultado foi extremamente satisfatório. Seu principal êxito, dentre grandes méritos da adaptação, foi a precisa e dificílima combinação entre a comédia juvenil de humor singular e a atmosfera aventuresca e circense que cerca a trajetória dos Baudelaire.

Esta excêntrica abordagem, com pitadas de metalinguagem e algumas piadas internas, permitiu que a produção transitasse entre a tragédia e o otimismo, a derrota e a esperança, de forma orgânica, assim como nos livros de Handler. Logo no duplo episódio piloto da série, por exemplo, há uma cena perturbadora em que Conde Olaf agride fisicamente a um dos órfãos após ser enfrentado por eles, mas pouco tempo depois também há uma sequência em que Sunny Baudelaire, com apenas três anos de idade, consegue se livrar do cativeiro onde estava sendo mantida porque vence uma partida de pôquer contra um dos capangas do vilão. Estas complicadas transições para uma série voltada para o público infantil funcionaram muito bem na maioria das vezes, e fizeram de Desventuras em Série um programa excepcional.

Além disso, gravada toda em um estúdio em Vancouver, no Canadá, a série também impressionou pelo seu competente trabalho de direção de arte, figurino e efeitos visuais, que conferiram à atração uma vivacidade e ambientação dignas de aplausos. Cada livro da saga foi dividido em dois episódios, e cada dupla de episódios trouxe inéditos cenários e caracterizações de personagens cuidadosamente elaborados para trazer o estranho mundo daqueles livros à vida. O capricho e nível de detalhamento de todos esses elementos visuais, como o burocrático escritório bancário do Sr. Poe, a inventiva casa móvel movida à ar quente de Hector em CSC e os incontáveis e exuberantes disfarces do Conde Olaf tornaram o universo criado por Daniel Handler um local misterioso, exuberante e assustador.

Com três ótimas temporadas e um total de 25 episódios que adaptaram todos os 13 livros da saga, a série dos Baudelaire na Netflix teve sua jornada concluída em janeiro de 2019 e deixou saudades. Diretamente envolvido na produção, Handler ressaltou a inspiradora experiência de ver sua obra sendo novamente transformada em realidade: “As pessoas ficam me perguntando se as adaptações estão sendo fiéis aos livros, mas acredito que os livros são fiéis a eles mesmos. As pessoas podem gostar ou não do que fazemos, mas tanto no filme como série, era muito excitante ver as pessoas chegando todos os dias para trabalhar e se dedicando a construir um lago, ou ir a um estúdio e compor a música correta… sempre que eu colaborava com um ilustrador, ou um músico, o importante era que estivéssemos tendo prazer naquilo que estávamos fazendo, e acho que isso é parte mais animadora de se produzir arte. Se você é um artista, o que vale é a experiência de produzi-la.”

Handler comentou também sobre um ponto importante da série que acabou se revelando um dos maiores acertos da nova adaptação: a constante presença em cena de Lemony Snicket conversando com o espectador em primeira pessoa e acompanhando as idas e vindas do Baudelaire.

Nos livros, Snicket é o narrador da trama e também um relevante personagem, que tem a responsabilidade de divulgar a cada volume o que aconteceu aos irmãos Baudelaire naquela parte da história, enquanto está foragido por algum motivo misterioso. “Patrick Warburton, que interpretou Snicket, tinha um papel muito difícil e fez um ótimo trabalho. Estávamos sempre inventando algo novo para ele fazer, como descer uma escada ou algo do tipo, enquanto ele ainda tinha de estar olhando para a câmera e falando um longo monólogo.”

Outro destaque envolvendo o elenco da série, segundo Handler, foi o entrosamento do premiado ator Neil Patrick Harris com todos os diversos atores mirins que passaram pela atração: “Eu não me dei conta disso quando o escalamos para o papel do Conde Olaf, mas como Neil já era uma pessoa famosa desde jovem, ele foi extremamente cuidadoso e compreensivo com os atores mais jovens da série, que gostaram muito dessa atenção. Não poderíamos ter pensado em um ator adulto melhor para lidar com as crianças do que ele, porque ele já faz isso há muito tempo e muito bem”, afirmou Handler.

E por falar em artistas renomados (spoilers a partir de agora), a atriz brasileira Morena Baccarin (Deadpool) foi a escolhida para interpretar uma das personagens inéditas e mais importantes de Desventuras em Série: a mãe das crianças e o amor inesquecível de Lemony Snickett, Beatrice Baudelaire. Para Handler, a atriz fez uma ótima participação especial e também foi uma homenagem aos fãs brasileiros de sua saga: “Aqui dos Estados Unidos, estou ciente do tremendo sucesso que Desventuras em Série faz no Brasil, que me deixa muito feliz, então ela foi como uma espécie de embaixadora brasileira na produção. Eu a encontrei apenas brevemente durante as filmagens, mas acho que ela fez um trabalho maravilhoso”, concluiu o autor.

Texto e entrevista: Felipe Teixeira
Foto Daniel Handler: Meredith Heuer
Arte da capa: Bruno Tavares

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