Por Rafael Ferreira
Antes de mergulharmos neste universo, deixe-me contar um pouco da minha história pessoal com este filme: quando jovem, um certo amigo gostava de alugar filmes com cenas de nudez para assistir escondido dos pais para descascar uma banana, quando soube que Cidade Dos Sonhos tem cenas entre duas mulheres, foi correndo para a vídeo locadora. Ele assistiu ao filme, fez o que queria, mas ao final lhe veio aquela sensação que geralmente temos quando assistimos a um filme do David Lynch, “o que diabos eu assisti?”. Este meu amigo ficou pensando sobre este filme durante uma semana inteira, refletindo sobre o que poderia significar, e por final acabou encontrando um significado para aquilo e recomendou que eu assistisse. O texto que se segue é um recorte das conclusões que eu e meu amigo tiramos, portanto, se você também recebeu recomendações deste filme, assistiu e não compreendeu, este texto pode clarear a sua mente. Vale o aviso que haverá SPOILERS, portanto, veja o filme (de preferência mais de uma vez) e depois continue a leitura deste texto.
Naomi Watts interpreta uma jovem aspirante à atriz que viaja para Hollywood, onde acaba imersa numa conspiração envolvendo uma mulher que sofreu uma tentativa de assassinato e adquiriu amnésia após um acidente de carro. Eventualmente, as duas mulheres são inseridas numa ilusão psicótica envolvendo uma caixa azul, um diretor de Hollywood e um misterioso clube noturno chamado Silencio. Na superfície, isto é um breve resumo do filme, mas por dentro existe muito mais a ser considerado. Como mencionado no texto sobre Clube da Luta (Figth Club, 1999, David Fincher), a revelação final somente fará sentido se durante o filme forem plantadas algumas pistas que a antecipam, caso contrário, o espectador se sentirá traído, a falta de tais pistas é o que prejudica muitos filmes do gênero suspense, no caso deste filme, as pistas estão plantadas por todo lado, mas não as vemos, ou quando as vemos, não as compreendemos, por isso, muitos se sentem traídos ao final. Acompanhem o texto que se segue para encontrarem as peças.
Logo no início, Betty vai para a casa da sua Tia Ruth, em inglês “Aunt Ruth”, retirando a letra A temos “Untruth” – inverdade. Quando estão buscando informações sobre o acidente em que Rita se envolvera, Betty diz “vai ser como nos filmes, vamos fingir ser outra pessoa”; Rita vê o crachá da garçonete e se lembra de um nome, Diane Selwyn. Quando elas decidem ligar para esta pessoa, Betty diz, “é estranho ligar para si mesma”, ao que Rita Responde, “talvez não seja eu”. Uma vidente aparece à porta, “meu nome é Betty”, diz a protagonista, “não, não é. Alguém está em perigo”. Todas estas são pistas fáceis de serem encontradas e já antecipam a revelação final. Porém…
No título que o filme recebeu aqui no Brasil encontramos o primeiro spoiler, Cidade Dos Sonhos já nos informa que estamos presenciando um sonho, enquanto Mulholland Dr. (título original em inglês) mantém o mistério (a vergonha está em saber que até em Portugal, apesar da fama de dar títulos esdrúxulos, foi mantido o título original). O filme leva o nome de uma rua em Los Angeles, onde acontece o acidente com Rita, localizada no topo de uma colina. Após o acidente, Rita se levanta e deixa o local, passando por Sunset Boulevard, a partir daí podemos fazer um paralelo com o clássico de Billy Wilder, Crepúsculo Dos Deuses (Sunset Blvd.; 1950), um filme sobre o sucesso e o fracasso em Hollywood, o mundo dos sonhos, os dois filmes abordam temas semelhantes; as duas ruas, uma no topo da colina e outra na base, passam a ideia de opostos, mas paralelos. Em Crepúsculo Dos Deuses também há uma personagem chamada Betty, uma jovem cheia de vida, que anseia uma carreira em Hollywood (como roteirista); o carro em que Camila e Adam se beijam, gerando ciúmes em Diane, é típico dos anos 1950, período em que se passa o filme de Billy Wilder, e para constar que não é apenas coincidência, em Crepúsculo Dos Deuses há um personagem chamado Gordon Cole, e na série Twin Peaks, dirigida por David Lynch, o próprio diretor interpreta um personagem chamado Gordon Cole, isso revela que Lynch tem uma clara admiração pelo filme de Billy Wilder.
O segundo spoiler acontece logo na segunda cena do filme, quando a câmera subjetiva se deita no travesseiro. Pronto! A partir daqui o filme se passa num sonho. Mesmo sabendo isto de antemão, devemos acompanhar o filme para descobrirmos quando o sonho acaba e começa a realidade, e o que nos prende a isto é a maneira que Lynch trabalha com opostos, ou “espelho”. Pode até ser mera especulação, mas no acidente que Rita se envolveu, a ambulância e os bombeiros foram chamados, observamos que o número da ambulância é 911, e no corpo de bombeiros é 119, como se estivéssemos vendo os números por um espelho. No dia seguinte ao acidente, Rita está sendo procurada, ou melhor, caçada para ser assassinada, o assassino é um cara loiro de cabelos curtos chamado Joe, que conversa com Ed, um cara de cabelos longos e pretos. Joe mata Ed para conseguir um livro preto, assim como no mundo real Diane (Naomi Watts), que é loira de cabelos curtos, encomendara a morte de Camila (Laura Harring), que tem cabelos longos e pretos. Diane é o oposto de Camila, esta é sexy, extrovertida, famosa, bem sucedida, a cena na limusine que se repete com as duas personagens, mas com um desfecho diferente, sugere que mais do que querer ter Camila para si, Diane quer ser Camila, e para isso alguém tem de ser Diane, isto acontece quando no mundo da fantasia Betty veste uma peruca loura em Rita, fazendo assim uma cópia dela mesma.
Lynch usou a repetição de temas e a ideia dos opostos para nos dar uma informação, de que todos os personagens durante o segmento da fantasia são manifestações da personalidade de Diane. De que forma isso acontece? Vejamos.
Logo no início há uma cena muito emblemática, numa lanchonete chamada Winkie’s, um homem chamado Dan (seu nome lembra “Diane”) relata seu sonho para outro, este se passa não em dia e nem em noite, há algo horrível atrás da lanchonete e lá ele encontra uma figura indescritivelmente horrenda. À primeira vista, isto parece não ter relevância na história, mas se observarmos melhor veremos que Dan é visto depois, no mundo real, na mesma lanchonete, no momento em que Diane encomenda o assassinato de Camila, uma testemunha do contrato feito com o assassino, com isto posso dizer que, no mundo dos sonhos, Dan tendo um mau pressentimento a respeito do que há atrás do muro da lanchonete, é Diane sentindo o mesmo a respeito do assassinato de Camila, e a chave que sela o acordo. O monstro é apenas a manifestação do lado mau de Diane.
Outro personagem que aparenta não tem muita relevância no filme é o Sr. Roque, um executivo de cinema na cadeira de rodas, cercado por sombras e só fala o necessário e quando necessário. Pelo contexto, podemos dizer que ele ordenou a execução de Rita (que falhou devido ao acidente) para poder contratar outra garota para o filme que Adam está dirigindo, mas como não houve confirmação de que ela morrera, ele ordena uma busca e execução de Rita, para então impor quem será a atriz principal no filme de Kesher, ele usa as pessoas para obter o que quer, mas quando não pode mais tirar proveito delas, as elimina, sendo assim, ele representa a maneira que Diane enxerga Camila, e a forma que esta atingiu o estrelato em Hollywood, usando as pessoas, para “eliminá-las” em seguida.
Por falar em como Camila atingiu o estrelato, o diretor com quem ela tem uma relação no mundo real, Adam Kesher, no sonho de Diane apresenta uma personalidade diferente da sua verdadeira, na fantasia, Adam é um profissional idealista, que de início vai contra as imposições do estúdio em escolher a garota para o seu filme, ele representa o idealismo no mundo profissional, alguém que não se corrompe. E por falar em “se corrompe” os irmãos Castigliane representam a desilusão com o cinema, afinal, cinema é manipulação. Durante a cena na reunião com os executivos enquanto estes tentam empurrar uma garota para a produção do filme, a garota da foto que Adam rejeita é a mesma que beija Camila pouco antes do anúncio do noivado desta com Adam, por isso, ela é representada na fantasia como a usurpadora. Após muita pressão, Adam concorda em tê-la em seu filme, o seu teste consiste em dublar uma música estilo anos 1950, o mesmo período em que o jitterbug era popular. Como sabemos, Diane se interessou por atuar após ganhar um concurso de dança, como no início do filme como vestígios desta lembrança, curiosamente o par de Diane não é visto (numa dança para duas pessoas), como se Lynch quisesse nos dizer que ela acredita ter ganhado o concurso sozinha, sua roupa brilhosa, ao contrário da vestimenta dos outros concorrentes, nos diz que ela se achava a mais bonita de todas, o que no final das contas nos diz que Diane prefere viver no mundo da fantasia. Assim, é coeso destacar que a mulher (concorrente usurpadora) que ganha o papel no filme, faça um teste com uma música dos anos 1950.
Até mesmo Betty é uma manifestação de um aspecto da verdadeira Diane. Não acredita em mim? Bem, ela é apresentada usando uma blusa rosa, bem apertadinha, possivelmente menor que o seu manequim, ela é doce e inocente. No mundo real ela é Diane, e não Betty, ela “se escalou” como Betty ao ver uma garçonete com este nome na lanchonete Winkie’s, uma garçonete que aparentemente é doce, inocente, feliz e com uma vida nada complicada, algo que a verdadeira Diane busca para si, portanto, Betty é a representação da inocência de Diane. No mundo da fantasia, a mesma garçonete aparece usando um crachá com o nome Diane, isto a liga com a verdadeira Diane que como sabemos batalhou para ser uma atriz, possivelmente tenha servido mesas, um clichê nos filmes, mas algo possível no mundo real, como prova disso temos as atrizes Jennifer Aniston, Gwyneth Paltrow, Julianne Moore, Sandra Bullock ou o ator James Franco que trabalhou nas chapas do McDonalds, ou o lavador de pratos Matthew McConaughey. A propósito, a escalação de Naomi Watts para o filme vem bem a calhar, uma vez que dizem as más línguas, conseguiu alguns papéis de destaque graças à ajuda da sua melhor amiga, Nicole Kidman, que a conheceu quando as duas fizeram um teste para um comercial de biquíni e dividiram um taxi na saída.
Como dito anteriormente, Betty representa a inocência, esta conclusão foi tirada a partir de uma análise do simbolismo das cores. Como sabemos, a cor vermelha está representada a perigo, ou sexo, sedução (depende do contexto), Rita sai do banho usando uma toalha vermelha, logo depois fica nua e se deita com Betty, que usa um pijama rosa; rosa é nada mais é do que um vermelho desbotado, ou seja, sem sedução, por isso Betty é apresentada usando uma blusa rosa, para representar a inocência, para contrastar com Camila que usa a sedução para chegar onde quer. No mundo real Diane não usa rosa, significando que ela não é mais inocente. Depois de pegar sua esposa em flagrante traindo-o, Adam pega as jóias dela e as banha em tinta rosa, numa tentativa de “purificar” a esposa; preto é a cor da morte, Diane e Rita usam vestido preto na limusine preta antes de seus respectivos momentos derradeiros. Mais tarde, o assassino mata para conseguir um livro preto, que será usado para encontrar Rita a fim de matá-la; azul pode significar tristeza, mas neste filme azul representa transição entre realidade e fantasia, é visto na caixa que Betty encontra em sua bolsa, na chave, nas letras em neon do Clube Silêncio, na luz do teatro, e no livro (sobre decoração) sobre o qual Betty coloca uma tesoura enquanto corta os cabelos de Rita, colaborando para a transformação desta.
Como dito antes, Dan relata quando se passa seu sonho, “não é dia nem noite, é meio penumbra”, sugerindo que durante a transição entre dia e noite o céu pode ganhar uma tonalidade azul escuro, como nos itens mencionados, isto pode nos dar uma pista de que a chave azul abrindo a caixa azul fará a transição entre fantasia e realidade. Por falar em transformação, não é à toa que a personagem de Laura Harring que, sofrendo de amnésia escolhe este nome em homenagem à Rita Hayworth. A atriz de ascendência hispano-irlandesa passou por algumas transformações físicas para conseguir alguns papéis de destaque no cinema.
Reforçando o que foi dito no parágrafo anterior, a blusa rosa que Betty usa representa a inocência, algo que Diane busca, algo que foi perdido, a narrativa nos faz achar que a perda se deu quando ela encomendou a morte de Camila, mas uma leitura com os olhos da psicanálise sugere algo diferente. Logo na primeira cena, Diane está num concurso de jitterbug, ao lado dela aparece um casal idoso em desfoque, isso significa que há algo que não está claro com relação àquelas pessoas, algo mantido em mistério. O casal aparece novamente no início do mundo da fantasia, eles descem do avião junto com Betty, mas algo neles não está certo, aquela risada maligna que eles dão dentro do taxi me deixa desconfiado. Depois de conhecer Rita, Betty liga para a tia, a câmera passeia pelo apartamento mostrando uma flor rosa (inocência), uma foto afetuosa de Betty criança e sua tia, e um quadro – ATENÇÃO PARA ESTE DETALHE – pintado por Guido Reni, a moça emoldurada é Beatrice Cenci, filha do aristocrata italiano Francesco Cenci que, no século XVI, a estuprou inúmeras vezes, saindo impune dos seus crimes. Beatrice e outros membros da família mais tarde organizaram um complô para assassiná-lo. Ela morreu em 11 de setembro (data fatídica) de 1599. A história de Beatrice é bem mais intrigante do que este resumo, pode ser vista no filme Que o Céu a Condene (La vera storia di Beatrice Cenci, 1969, Lucio Fulci).
A ligação entre Diane e Beatrice Cenci pode ir além do fato de que ambas organizaram um esquema para assassinar seus opressores. Betty participa de um teste para um filme, contracenando com Chuck, um homem bem mais velho do que ela (uns vinte ou trinta anos de diferença), o diálogo entre os dois contém dupla interpretação, em ambas sugere um envolvimento sexual ilegal: “meu pai está lá em cima”, os pais de Diane/Betty nunca são vistos, podem estar mortos, o que implica que ela pode ter sido criada pelos avós, Chuck pode representar o avô de Diane, se isto for considerado, as falas “você está jogando um jogo perigoso” e “se eu contar o que houve, você vai pra cadeia” sugerem que havia algo sinistro com seus avós, reforçam o duplo sentido neste diálogo e fazem uma ligação com a risada maligna enquanto seus avós estão no taxi.
Próximo ao final do filme, a caixa azul é aberta, um rosto monstruoso aparece e um casal idoso sai lá de dentro – o mesmo casal no início do filme – eles assombram Diane encurralando-a em sua cama onde ela comete suicídio. O que a caixa azul abre é na verdade as lembranças reprimidas de Diane, em sonho seus avós são pessoas gentis, e em realidade são monstros responsáveis por possíveis atos incestuosos. Outro indício de que Diane foi vítima de abuso sexual acontece quando Adam Kesher (que no mundo da fantasia é uma parte de Diane) encontra sua mulher na cama com outro homem, e pinta suas jóias de rosa numa tentativa de purificação, momentos depois um leão de chácara esmurra a mulher e o amante, uma tentativa de obter retribuição. O abuso que sofrera fez com que Diane criasse transtornos em sua mente, de forma que ela prefira viver num mundo fantástico em sua mente, assim como a fez ter uma visão diminuída de si própria, como sugere um outro momento no filme em que o assassino que procura por Rita conversa com uma prostituta, buscando informações sobre seu alvo, ela pede por um cigarro e ele oferece, mas ela precisa pegar em seu bolso, o mesmo bolso onde ele guarda a chave azul, isto liga Diane e a prostituta, o assassino serve às duas, porque a prostituta também é uma parte de Diane, a parte em que ela se vê como tal. Observe também que a prostituta tem hematomas no rosto, uma vitima de abuso.
Para a maioria dos fãs do filme, a cena mais marcante é quando as duas mulheres vão para o Clube Silêncio, a estranheza começa antes, quando o taxi que elas pegam não é mais amarelo, e sim um carro preto, como se as levasse para a própria morte, pressagiando o assassinato de Camila, e se isso parece forçado, os dizeres “Hollywood is hell” no poste quando as duas chamam o taxi pode mudar sua opinião. As cortinas do teatro se abrem, algo será revelado. Um ilusionista apresenta o espetáculo falando em três idiomas diferentes, inglês, espanhol e francês. Um tocador de trompete aparece, ele finge que toca, mas na verdade a música é uma gravação, algo falso, o mágico também representa a falsidade no espetáculo, afinal, uma ilusão nada mais é do que um ato falso que achamos ser verdadeiro até descobrirmos por conta própria como o truque é feito. Durante o filme, “três” aparece como um tema recorrente, por exemplo, a chave azul no mundo da fantasia tem três arestas, representando o triângulo entre Diane, Camila e Adam; no Clube Silêncio, o ilusionista fala em três idiomas. Quem é ele? O que ele revela? A conclusão que chegamos é a seguinte, ele representa uma mescla entre Diane, Camila e o mundo dos sonhos. Acompanhe este raciocínio: Camila é vista falando espanhol na festa em que anuncia o noivado; Diane parece não entender, ela fala apenas inglês; e o livro (azul) de decoração francesa no apartamento da Tia Ruth sugere que o ambiente em seu apartamento é de natureza francesa. Inglês = Diane, Espanhol = Rita, Francês = o ambiente que as cerca, ou seja, o mundo da fantasia.
Quando perguntei ao meu amigo o que ele achava que o Cowboy representa, ele me fez lembrar da era de ouro de Hollywood, dos westerns clássicos, que foram perdendo forças com o passar dos anos. Se Adam é uma parte de Diane, o Cowboy também é. Adam representa o idealismo profissional, o Cowboy o corrompe, portanto, ele representa o oposto, ele surge para Diane no mundo real na festa, quando Adam e Camila anunciam o noivado, ela o associa com aquele momento infeliz, por isso no mundo da fantasia ele aparece para Adam como uma ameaça. O Cowboy também se manifesta antes das duas se deitarem nuas na cama, um chapéu próximo a um espelho decora o quarto, logo em seguida Betty beija Rita e diz que a ama, a morena não responde, isso ilustra o relacionamento delas no mundo real, Camila não corresponde ao amor de Diane. Ele fala em enigmas porque…bem, é um filme do David Lynch, alguém tem de falar em enigma, este enigma também é uma pista para desvendarmos o filme: “uma charrete… quantas pessoas dirigem uma charrete?” A resposta é “uma”, porque há uma pessoa sonhando, e se Adam se comportar bem, ele pode pegar carona na charrete também. Lembrando que ele verá o Cowboy uma vez se ele se comportar bem, mas duas se ele se comportar mal, da mesma forma que ele visita Diane uma vez e diz “ei, garota bonita, é hora de acordar” com um sorriso no rosto, e logo em seguida aparece novamente, dessa vez sem o sorriso, pois ela se comportara mal.
Como vimos, boa parte de Cidade dos Sonhos se passa num mundo fantástico, a partir disto podemos traçar um paralelo com outro filme que também se passa num mundo fantástico. As semelhanças entre o filme de David Lynch e O Mágico de Oz de Victor Fleming (1939) são incríveis. Em ambos, a imersão no mundo fantástico começa na cama; Dorothy abre a porta de casa para um mundo mágico, Betty ao sair do aeroporto diz estar num “mundo dos sonhos”; Dorothy pega a estrada de tijolos amarelos, Betty pega um taxi amarelo; Dorothy e Betty querem ir para a casa de sua tia a quem ama muito. Em O Mágico de Oz, o personagem título ensina uma valiosa lição para Dorothy e os outros personagens sobre quem eles realmente são, em Cidade dos Sonhos, a revelação acontece por meio de um ilusionista (mágico) no Clube Silêncio. A lanchonete Winkies é uma referência ao livro de L. Frank Baum, Winkies são os seres que guardam o palácio da Bruxa, e em Cidade dos Sonhos, atrás do Winkies é onde encontramos a “bruxa”. Nos dois filmes temos personagens no mundo real escalados como aspectos diferentes da protagonista, podemos traçar um paralelo entre os personagens dos dois filmes: o Cowboy seria o Espantalho, ele representa a inteligência; o Sr. Roque seria o Homem de Lata, um homem frio e sem coração; os Irmãos Castigliane seriam o Leão Covarde, usando a intimidação para conseguirem o que querem. Em O Mágico de Oz, Dorothy canta Over the Rainbow, uma música que fala de como ela almeja estar num mundo mágico onde tudo é bonito, mas ao final do filme, ela vê o quanto aquele mundo é corrompido e deseja voltar para casa, para muitas pessoas, Hollywood é um lugar mágico onde tudo e todos são bonitos, mas se observarmos bem é um lugar corrompido.
Como uma boa obra de arte, este filme está aberto a várias interpretações, variando de pessoa para pessoa de acordo com a bagagem que cada um traz consigo, de forma que o filme que eu vi, pode ser diferente do filme que você viu. E não podemos negar que Cidade dos Sonhos agora fará parte da sua bagagem após assisti-lo.