Um dos filmes mais importantes da Era de Ouro do cinema sul-coreano, Bala Sem Rumo (1961) traz um olhar afiado sobre uma Coreia em convulsão social, brigando para se entender como nação. O longa conta a história de uma família em uma Coreia do Sul pós-guerra e as formas particulares como cada membro dessa família se relaciona com essa nova Coreia que se forma ao se redor.
O diretor Yu Hyun-mok já deixa claro logo de início as suas inspirações no neorrealismo italiano, especialmente as construções temáticas e o olhar sobre determinados tipos de personagens, mas o longa amplia as suas referências ao desenhar os sentimentos de seus personagens com uma iluminação expressionista, ao desenvolver diálogos que trazem uma gravidade teatral às performances dos atores e ao abusar de rimas visuais para aprofundar o mergulho no estudo de seus personagens.
A característica mais marcante do longa, no entanto, é a sua capacidade de análise sobre a realidade sul-coreana mesmo tão pouco tempo após o armistício. O longa, que chegou a ser banido no país, consegue abordar as mais diversas questões que afloravam nessa sociedade fragmentada em um microcosmo familiar de forma a interligar todas os anseios e aflições que permeavam a sociedade coreana. A família que protagoniza o longa traz um amálgama das gerações, das reflexões e das perspectivas de uma Coreia que não teve tempo para se entender como essa nação fragmentada.
A estrutura familiar e a construções de cada personagem são os pontos centrais que tornam o roteiro de Bala Sem Rumo um marco desse período do cinema sul-coreano. Vale, portanto, nos debruçarmos sobre cada um desses personagens para um melhor entendimento sobre o estado das coisas nessa sociedade dividida à revelia.
O veterano
Vagando entre as reflexões provocadas pelo seu desemprego e os fragmentos de uma guerra que o jogou em um limbo social, o veterano da guerra que dividiu as Coreias é a representação máxima do desamparo do pós-guerra em uma sociedade que não está pronta para olhar para as próprias cicatrizes e que tem novas feridas se abrindo a cada dia.
Um homem que não tem um espaço cativo nessa nova sociedade em construção e que tem como uma das poucas oportunidades de trabalho se exibir como uma caricatura e tratar a sua vida como um show exibicionista para o grande público.
O contador
A eterna dor de dente é implacável ao lembrar que o papel do personagem é ser engolido, mastigado e cuspido pelo sistema. Ele é uma alma sem perspectiva e que tem que lidar com as aflições de não ter possibilidades de ascensão e de não conseguir sustentar a própria família.
O homem, submetido a uma rotina massacrante e nada recompensadora, se tornou um zumbi do capitalismo. Não há esperança ou objetivos alcançáveis, perspectiva de melhora ou de mudança, apenas a resignação e o conformismo fazem com quem o personagem siga andando, como uma bala sem rumo.
A jovem
Entre um passado recente de destruição e caos e um futuro incerto, a jovem se prostitui para tentar mudar sua realidade
com os dólares dos soldados americanos. A intervenção americana aparece aqui como essa força corruptora que não só alija uma geração de seu futuro, como tenta se vender como solução para os problemas.
A jovem representa uma geração perdida em meio a esse turbilhão social e aos desejos de se inserir nessa sociedade sem um rumo claro, da forma que for possível.
A menina
A juventude não permite entender as feridas abertas e a falta de maturidade não revela o estado da miséria que a rodeia.
É uma criança sem qualquer expectativa de futuro, mas que tem o sonho de ganhar um sapato e uma saia. O futuro, até então intangível, é o mesmo das outras mulheres e homens da família, mas a pureza ainda não deu lugar ao fatalismo.
O capitalismo já alcança os sonhos e desejos da menina, que ainda não faz ideia dos problemas que também se arvoram sobre a sua família.
O menino
Um pouco mais velho do que a menina, ele já tem uma consciência sobre onde pode se encaixar nessa sociedade. O abandono dos estudos para vender jornais na rua é o símbolo de um país onde a desigualdade e a distância entre as classes aumentam e se espalham pela cidade.
Os jornais que o jovem vende contam a história da sua família e de todos aqueles que compartilham da infelicidade de fazer parte da base da pirâmide e não conseguir olhar pra cima. O jornal é uma versão de baixo orçamento da mesma caricatura proposta ao veterano.
A mãe
A personagem sem voz que passa seus dias entre a submissão e a tentativa de evitar o mesmo destino de sua mãe. Entre o papel da mulher em uma sociedade conservadora e o constante embate interno sobre ver o tempo passar ao seu redor sem ter como mudar o seu fluxo e a tentativa de criar uma família, ela se coloca como o reflexo da mulher em uma sociedade extremamente patriarcal.
A sua vida, o parto e a sua morte são momentos de absoluta solidão. Nem mesmo o espectador a acompanha durante os seus sofrimentos finais. Ela não é ninguém como indivíduo, apenas uma parte integrante de uma engrenagem familiar.
A idosa
Memórias de um tempo distante e delírios que se dividem entre resgates dessas memórias e alertas sobre o presente.
A história de uma Coreia em guerra se reflete nos gritos de “Vamos embora!” presentes nos lampejos de uma vitalidade senil da personagem mais velha da família. Ela já não tem o que acrescentar a história dessa família, mas é uma lembrança constante de outras épocas do país.
A idosa representa uma Coreia que não se entende no tempo. Uma Coreia que não se entende como nação.
Bala sem Rumo é uma obra-prima do cinema coreano, mas acima de tudo é uma belíssima reflexão sobre um país dividido e sobre as mazelas de uma guerra que muito mais do que vitoriosos e derrotados, foi responsável por destruir famílias e desenhar um destino forçado para uma população que não teve o direito de resolver as próprias diferenças.
O cinema coreano, que iria florescer novamente décadas depois, com a sua retomada na década de 90 e nos anos 2000, já se dedicava a olhar para a questão da identidade de um povo complexo e plural mesmo sob o escrutínio de uma ditadura violenta e do pastoreio norte-americano, apontando para a desigualdade social e para a enorme herança negativa da guerra.
Embora o caminho traçado pelo país nos anos de reconstrução tenha sido sob uma manta conservadora que moldou boa parte das relações familiares e sociais do país, o cinema sempre teve sua função de reflexão sobre a realidade do seu povo como bandeira importante. A existência de um Parasita (2019), que arrebatou prêmios ao redor do mundo, está diretamente ligada ao olhar crítico de cineastas como Yu Hyun-mok e obras como Bala Sem Rumo, inclusive lançando mão de rimas visuais e construções imagéticas semelhantes ao clássico para retratar a luta de classes na sociedade sul-coreana.
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