Por Felippe Gofferman
Quantos são os diretores que possuem uma assinatura tão forte que seria possível perceber sua autoria em poucos minutos de filmes?
Wong Kar Wai é o mais renomado internacionalmente dos cineastas da segunda onda do cinema de Hong Kong e tem em sua cinematografia, como característica marcante, o uso da fotografia e da arte para delinear sua história.
A Segunda Onda, que se pauta pela exaltação da cultura local e trabalha o dia-a-dia do povo do estado que tem em sua história anos de domínio por parte de outros países, acabou elevando o cinema de Hong Kong a um patamar digno de rivalizar em qualidade com os filmes da grande indústria chinesa.
Kar Wai, que já havia se apresentado como um expoente do novo cinema em Wong gok ka moon (1988) e Dias Selvagens (1990), filmava Cinzas do Passado (1994) quando ficou saturado, após intensas gravações do épico de artes marciais que utilizava a ação como escape para os problemas cotidianos e decidiu se empenhar na escrita para criar uma história simples, mas que passasse a verdade de seu povo e mostrasse o que as pequenas coisas tem de importante.
Foi aí que nasceu seu filme que chamou a atenção de grandes cineastas pelo mundo: Amores Expressos (1994).
O longa conta as histórias entrelaçadas de quatro personagens, mas sem a arrogância recorrente em filmes que forçam os desencontros para aparentar algo que remete à teoria dos seis graus de separação. Amores Expressos trabalha os encontros de forma natural, pois sua dose de realismo faz com que o roteiro caminhe sem artifícios que empobreceriam a trama com a finalidade de criar plot twists.
Os protagonistas tiveram seus intérpretes escolhidos a dedo. Todos funcionam com perfeição ao entregar personalidades apaixonantes aos peculiares papéis.
Brigitte Lin, grande atriz taiwanesa, interpreta uma intrigante contraventora que, entre seus afazeres ilícitos, acaba trombando com o policial He Zhiwu, vivido por Takeshi Kaneshiro, em uma noite turbulenta.
A personagem mais apaixonante, no entanto, é vivida por uma novata no cinema, mas muito conhecida no cenário musical chinês, a cantora Faye Wong que, vivendo a personagem Faye, tem seu caminho cruzado por He Zhiwu e pelo policial número 663, interpretado por Tony Leung.
A ausência de nome não é atoa. O policial 663, apesar de ter sua personalidade forte diluída magistralmente pela segunda metade do filme, se apropria da personalidade de seus interesses amorosos, como é possível observar através de sua obsessão por aviões, enquanto namora uma aeromoça, ou a atitude empreendedora que demonstra mais no terceiro ato, resultado do furacão que passou por sua vida.
O personagem de Tony Leung se apaixona por Faye sem o peso dos clichês hollywoodianos. A jovem, que trabalha na lanchonete Midnight Express, é uma passagem para o desconhecido. Uma musa digna dos grandes filmes independentes (a cena em que ela aparece dançando “ California Dreamin’ ” é pura e encantadora). A música, tema da personagem, encaixa perfeitamente com o clima, embora seja cantada em inglês, e narra o sonho real de Faye, que planeja viajar para conhecer a Califórnia.
Os pequenos detalhes se espalham e se encaixam sem esforço. Faye é a alma gêmea de 663 ao mesmo tempo em que as almas gêmeas nada mais são que momentos de coincidência extrema em meio a um emaranhado de encontros e desencontros sem motivo.
O universo desenvolvido por Kar Wai é o nosso universo. Faye é aquela menina que senta na sala de aula e passa mais tempo olhando para o lado de fora, pela janela, do que para o quadro negro, enquanto 663 é apenas um homem com forte carência emocional que aprende a ser melhor com uma jovem ainda mais perturbada que ele.
Vale destacar uma referência: Éric Rohmer. O ritmo e o foco (ou a falta de) de Amores Expressos lembram muito os dos filmes do diretor e autor francês, embora na obra de Kar Wai existam alguns picos dramáticos, mas no geral o diretor presta uma homenagem ao cinema da Nouvelle Vague em sua narrativa.
Os detalhes, porém, devem ser destacados. A visão superficial já garante ao longa um status elevado e o definem como um novo clássico indie, mas se nos aprofundarmos na direção e na mise-en-scène o filme cresce e se apresenta como um dos grandes filmes de sua época.
A direção de Kar Wai é magnífica e o cuidado que o diretor e Christopher Doyle, fotógrafo de boa parte de sua filmografia, tem com a fotografia resulta em uma linda mistura de composições pensadas frame a frame e improvisos por parte do operador de câmera.
A iluminação e a arte, que não poupam o uso das cores supersaturadas para dotarem de significado ou simplesmente conferirem destaque às emoções nas cenas, contribuem para o contraste da formação da Hong Kong frenética e de seus personagens em marcha lenta que lá habitam.
As cores já viraram marca registrada do diretor, que a cada novo trabalho impressiona por sua sensibilidade ao trabalhá-las na construção de suas tramas muito ricas no que tange os sentimentos intensos que nos afligem.
Amores Expressos é a síntese de uma Hong Kong pulsante e independente. Uma ode aos pequenos momentos e ao amor. Uma constatação de que momentos que duram segundos podem ser tão importantes quanto uma corrida na chuva e da genialidade de um grande diretor.