No Globo de Ouro deste ano, uma ação em especial chamou a atenção: muitos, para não dizer quase todos, convidados foram vestidos completamente de preto para a cerimônia. A escolha por tal cor era um símbolo de apoio ao movimento Time’s Up. Criado por mulheres que atuam na indústria do entretenimento, seja no cinema, música, teatro ou qualquer arte, e endossado por nomes como Emma Watson, Kate Winslet e Keira Knightley e entidades como o Domestic Violence Intervention Project (DVIP) e o Latin American Women’s Rights Service, o movimento é uma “chamada de união” para todas as mulheres pela luta contra a desigualdade de gênero e o assédio sexual.

Com tantos nomes famosos abraçando a causa, o Time’s Up logo chamou a atenção, atingindo seu ápice no dia 8 de janeiro. A cerimônia do Globo de Ouro foi cheia de pequenos e grandes protestos, como a ausência da clássica “música de interrupção” durante o discurso das vencedoras, uma fala empoderadíssima da Oprah Winfrey, homenageada com o prêmio Cecill B. DeMille por sua contribuição à arte e seu ativismo [ela foi a primeira mulher negra a receber essa homenagem em 75 edições, aliás] e, claro, o momento em que Natalie Portman decidiu expor algo que [absurdamente] ainda está presente nas grandes premiações em uma de suas principais categorias: a ausência de mulheres indicadas ao prêmio de Melhor Diretor. E foi ele que acabou dando origem a esse texto de agora.

Deu origem porque, pouco após a fala de Natalie e a satisfação de muitas mulheres por, finalmente, alguém ter vocalizado esse elefante branco da indústria cinematográfica, li uma variedade de comentários [em sua maioria escritos por homens] que me chocaram. Algo como “o prêmio é para o mérito, não pelo gênero” ou “daqui a pouco vão falar ‘não tinha um diretor gay'” e, claro, o clássico “quanto mimimi”. Retomando uma fala que já fiz anteriormente, e contextualizando o cenário do Globo de Ouro primeiramente, trago alguns dados, no mínimo, interessantes. Barbra Streisand foi a única mulher a vencer na categoria de Melhor Diretor isso em 1984 e apenas cinco mulheres foram selecionadas para competir na mesma categoria em toda a história do evento, que começou em 1944. Como justificar que o vencedor na categoria de Melhor Filme de Comédia ou Musical (Lady Bird: A Hora de Voar) não teve sua diretora lembrada? Será mesmo que em 74 anos só tivemos cinco grandes filmes dirigidos por mulheres?

Mas, o Globo de Ouro são águas passadas. O assunto agora é o Oscar. Neste ano, quando os candidatos à categoria de Melhor Direção foram anunciados e o nome de Greta Gerwig surgiu entre os nomeados, algumas pessoas celebraram. Outras, usaram da ironia (“Pronto, agora acaba o mimimi”) ou da, acredito eu, ingenuidade/ignorância (“Viu? Indicam mulheres também, é só ter filme bom”). Porém, fato é, que apesar de estimulante, a indicação de Greta não tem sabor de vitória. Pelo contrário, tem mais um gostinho de “não quisemos cometer o mesmo erro que o Globo de Ouro” com “cumprimos a cota”. Não, não desmereço o mérito de Greta. Ela traçou sua trajetória e fez por merecer. A questão não é Greta ou seu merecimento. A questão, aliás, vai muito além dela.

Desde sua primeira edição, em 1929, apenas cinco mulheres foram indicadas na categoria. Em 90 anos, apenas cinco mulheres foram, aos olhos da Academia, dignas da nomeação. E somente uma levou a estatueta: Kathryn Bigelow, em 2010, por Guerra ao Terror [a mesma Kathryn que, talvez, poderia ser lembrada neste ano por Detroit em Rebelião, quem sabe]. A distância entre as indicações também impressionam. A primeira mulher a figurar na categoria foi a italiana Lina Wertmüller, em 1977, por Pasqualino Sete Belezas. Foram necessárias 48 edições para que se indicasse uma mulher e dezessete anos para que uma segunda mulher fosse indicada. Em 1994, a neozelandesa Jane Campion foi indicada por O Piano. Uma década depois, em 2004, Sofia Coppola recebeu uma indicação por Encontros e Desencontros. Em 2010, Kathryn levou a estatueta. O momento foi anunciado por Babra Streisand, que incluiu em sua fala “a hora chegou” antes de chamar a vencedora:

No entanto, o que parecia o início da igualdade dentro da categoria, foi um momento de exceção. Levaria, novamente, quase uma década para que outra diretora fosse indicada. E é dentro deste contexto que questionamos, não a indicação de Greta, mas os motivos de termos apenas ela ou, ainda mais, por finalmente ela surgir dez anos depois da última indicada. Todo esse cenário não pode ser justificado com posicionamentos como “tá, mas aonde estão bons filmes feitos por mulheres?” ou “é uma questão de produção. Mais homens produzem, mais homens são indicados”. Sim, mais homens, de fato, realizam filmes em Hollywood e isso só demonstra quão errado está esse número. Um estudo realizado pela Universidade do Sul da Califórnia este ano constatou, após analisar uma base de dados de 1.100 filmes populares produzidos de 2007 a 2016,  que entre os 1.223 diretores envolvidos nesses projetos, apenas 4% eram mulheres. Essa porcentagem reafirma algo que a própria autora do estudo, Dra. Stacy L. Smith, constatou, “embora muita atenção tenha sido prestada ao ‘problema com diretoras mulheres em Hollywood’, mudanças reais não aconteceram atrás das câmeras”.

Toda a questão se torna ainda mais alarmante quando lembramos que nunca na história do Oscar uma mulher negra foi indicada na categoria. Em 2014, Ava Duvernay foi esnobada enquanto seu longa, Selma, figurava entre os indicados a Melhor Filme. Neste ano, Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississippi foi indicado a duas categorias, mas sua diretora, Dee Rees, passou batida. Tendo em vista todos esses números, observar tal situação e acreditar que ela se resume à falta de bons filmes dirigidos por mulheres só demonstra o quão enraizado o machismo dentro do cinema está e o quanto ele é naturalizado. Não entrarei na questão do assédio [moral, verbal, sexual] que muitas mulheres sofrem antes mesmo de sequer conseguir entrar no meio, mas deixo como sugestão o exercício de imaginar todas as dificuldades de se entrar em uma área quando se é jovem e inexperiente e acrescentar a elas tal fator. Acrescento também o sentimento de se entrar em um universo no qual você é, na grande maioria das vezes [e digo isso após conversar com dezenas de mulheres maravilhosas do cinema brasileiro], subestimada e inferiorizada por conta do seu sexo. A verdade é que, para ser mulher no cinema, é preciso muita força e resistência.

Não faz sentido, em um universo tão amplo como o do cinema, em uma época na qual cada vez mais falamos sobre representatividade e diversidade, observarmos o maior prêmio da indústria indicar uma mulher a uma de suas principais categorias pela quinta vez em 90 edições e entender isso como natural ou justo. Não se trata de mérito, se trata de poder. Mas se trata, principalmente, de reconhecimento. É sobre produções que existem e diretoras com trabalhos tão bons ou melhores do que os indicados que são esquecidas ou nem mesmo consideradas. É sobre ainda manter (muito) mais do mesmo e enxergar isso como normal. Há uma voz clamando cada vez mais alto e com cada vez mais firmeza por algo muito básico. Não prioridade ou superioridade, mas, unicamente, por igualdade. Não somente no Oscar, não somente em Hollywood e, com certeza, não somente no cinema.

Greta Gerwig é um começo e uma alegria, mas não é o suficiente e nós não agiremos como se fosse. Não mais. Time’s up.