Por Cleiton Lopes

Em 2016 a hashtag #OscarSoWhite (Oscar Muito Branco, em tradução literal) foi utilizada como protesto para a edição da premiação que não tinha nenhum filme envolvendo a temática negra e nem negros em papeis importantes nos principais indicados. Esse é um problema antigo. Das mais de 3 mil estatuetas entregues nos 89 anos de existência, apenas 30 foram entregues a profissionais negros em 147 indicações.

A primeira negra a vencer o premio foi Hattie McDaniel em 1940 como atriz coadjuvante como a escrava Mammy em …E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939). Mesmo assim, na cerimônia, após receber o prêmio, a atriz voltou para seu lugar em uma mesa separada, perto da cozinha e longe da equipe do filme.

Depois o fato só se repetiu em 1964 com Sidney Poitier ganhando o Oscar de Ator por Uma Voz nas Sombras (Lilies of the Field, 1963), sendo o primeiro negro a ganhar o premio. Em 2002, ele também foi o primeiro negro a receber o Oscar honorário pelo conjunto da obra. No mesmo ano, Halle Berry levou o prêmio de melhor atriz por A Última Ceia (Monster’s Ball, 2001), sendo a primeira negra a ganhar o premio na categoria e também Denzel Washington levou melhor ator por Dia de Treinamento (Training Day, 2001).

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Hattie McDaniel fazendo história no Oscar, em 1940.

Nos anos seguintes foram premiados Jamie Foxx em 2005 como ator por Ray (Iden, 2004), Jennifer Hudson em 2007 como atriz coadjuvante por Dreamgirls: Em Busca de Um Sonho (Dreamgirls, 2006), Mo’Nique em 2010 como atriz coadjuvante por Preciosa (Precious, 2009), Octavia Spencer em 2012 como atriz coadjuvante em Histórias Cruzadas (The Help, 2011), Lupita Nyong’o em 2014 como atriz coadjuvante em 12 anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2013). No mesmo ano,Steve McQueen foi o primeiro negro a levar o Oscar de Melhor filme por 12 Anos de Escravidão, mas não de melhor direção. John Legend em 2015 ganhou o prêmio de melhor canção original por “Glory” do filme Selma (Iden, 2014).

O que a maioria dessas atuações tem em comum é a problemática do negro sempre sendo visto em papeis estereotipados como escravo ou empregado doméstico. A atriz Hattie McDaniel, apesar do pioneirismo na premiação, foi muito criticada pelos membros da comunidade negra, por interpretar, na maior parte das vezes, empregadas. A resposta que ela deu foi: “Por que vou reclamar em ganhar US$ 700 por semana para interpretar uma doméstica? Se não o fizesse, eu estaria ganhando US$ 7 por semana sendo uma”. Mas isso foi no tempo em que a segregação racial ainda estava em alta, agora precisamos olhar esses detalhes com mais atenção.

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Halle Berry e Denzel Washington: vencedores em 2002

Levantamentos recentes apontaram que a maioria dos votantes da premiação são homens brancos com mais de 50 anos. Esse cenário dificulta a percepção da ausência das diferenças. Depois dos protestos contra um Oscar muito branco, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, organizadora do evento, tomou providências. Como forma de amenizar a situação, tentou diversificar seus membros.

Como medida paliativa, a Academia convidou 683 membros da indústria cinematográfica para comporem os votantes no qual, deste total, 46% são mulheres e 41% não brancos. Dentre os convidados estão os brasileiros Anna Muylaert, diretora de Que horas ela volta? (2015) e Alê Abreu, diretor da animação O Menino e o Mundo (2013), além de outros.

Conversei sobre o assunto com o professor e crítico de cinema Heitor Augusto. Ele também é negro, como eu, e desenvolve trabalhos envolvendo a temática no cinema, como o curso Blaxploitation e o Cinema Negro dos EUA, movimento da década de 1970 em que os filmes eram produzidos e atuados por negros e dirigidos a esse grupo.

A primeira ressalva de Heitor é quanto à validade da premiação. Se observarmos a história do Oscar, segundo ele, ganhar um prêmio não garante seu valor cinematográfico. Certamente já passaram pela premiação diversos filmes que hoje são fundamentais à cinefilia, mas existe uma quantidade mais expressiva ainda de títulos que nem se quer foram indicados ao prêmio em seus 89 anos de existência, observa Heitor.

Quanto à maior presença de negros na premiação deste ano, Heitor acredita que isso é exclusivamente devido aos protestos ocorridos na última edição. Não quer dizer exatamente uma mudança de pensamento da Academia, mas se trata, principalmente, de um valor mercadológico para a organização.

Heitor Augusto, Crítico de Cinema

Heitor Augusto, Crítico de Cinema

“Numa contemporaneidade em que palavras como ‘diversidade’ viram comodities — mais que isso, viram ‘assets’ para a construção de uma imagem institucional — , fica feio ser chamado de preconceituoso. […] Prevejo discursos na noite da premiação repetindo vários lugares-comuns e defendendo como institucionalmente o Oscar sempre esteve aberto à diversidade bla-bla-bla. Sou bastante desconfiado das ‘boas atitudes’ da hegemonia quando ela não está acompanhada de mudanças estruturais (por exemplo, chama-se mais membros pra Academia, mas de que forma foi alterada a distribuição de poder entre as pessoas que tem a caneta pra decidir que filmes são feitos?)”, destaca Heitor.

É complexo falar deste assunto, pois o problema é mais enraizado do que simplesmente ter negros indicados. Tenho em mente que, por exemplo, para um ator ou atriz ter um destaque em algum filme, ele precisa de um papel que o proporcione essa oportunidade. Fica difícil dar uma indicação para uma parcela da sociedade, que só ganha papeis importantes quando os filmes tratam de assuntos especificamente relacionado à eles como a escravidão. Como ter um papel importante para um negro em um filme como, por exemplo, Titanic (iden, 1997), recorde de indicações na premiação, que se passa em 1912 em um navio que coloca os brancos mais pobres em um porão e divide até os barcos salva vidas quando o navio está literalmente afundando?

Outra questão. Em 2015, o filme Selma, que conta a história de Martin Luther King, foi indicado na categoria de melhor filme. Muitos reclamaram que a produção deveria ter mais indicações para negros. Acho que qualquer um concorda —  ou ao menos deveria — que Martin Luther King Jr., personagem central no filme, foi sem dúvida uma figura muito importante para a história humana e serve de inspiração para muita gente até hoje, independente da cor da pele. Mas, aqui não temos uma premiação de figuras históricas, mas sim de produções artísticas. O critério deve — ou ao menos deveria ser — exclusivamente artístico, quanto a realização do filme.

Daí vem a questão: devemos valorizar mais um filme pelo fato dele contar a história de uma importante figura histórica ou devemos levar em conta exclusivamente as questões relacionadas à realização do filme? Acredito que ambos os critérios são importantes, mas pensando em uma premiação de cinema, o segundo quesito deveria ao menos ter uma relevância maior. Pois seria complexo, digamos até imoral, levar à premiação um filme que é executado com excelência técnica mas que exalte, por exemplo, o nazismo. Ou seja, as duas coisas são indissociáveis, porém, não excludentes.

Na história do cinema temos um exemplo disso. O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), de D. W. Griffith, é referência com relação à linguagem cinematográfica e é objeto de estudo até hoje dos pesquisadores de cinema. No entanto, ele possui um discurso extremamente racista. No filme, os negros são tratados como selvagens e ameaçadores à uma população branca. A salvação vem a cavalo com os membros da Ku Klux Klan, movimento que defendia a supremacia dos brancos e eram conhecidos por suas vestes e capuz na cabeça.

O nascimento de uma nação

Cena do filme de D. W. Griffith, O Nascimento de uma Nação

Acredito que a mudança, primeiramente, deve partir da cabeça dos realizadores em colocar nas suas produções uma diversidade maior de etnias, espelhar um mundo mais globalizado e plural. Estas “minorias”, ganhando mais destaque nas telas e não somente em filmes envolvendo temática específicas, resultarão em maiores chances de terem seu trabalho reconhecido e, consequentemente, indicações no Oscar ou qualquer outra premiação.

“Trata-se de um espaço que deve ser disputado, sim, caso seja esse o interesse de cada pessoa. Se um diretor/diretora quer viver nesse lugar mainstream, se é isso que almeja, ok, respeito que vá lá e brigue por inclusão no Oscar, na Academia, em Hollywood. Fico feliz que existam pessoas reformistas dispostas a brigar de dentro. Mas ressalvo a minha posição de sempre estar com pés e mãos atrás, desconfiando do bom mocismo branco.

Ilustro a desconfiança: olhemos para um filme como o Estrelas além do tempo (Hidden Figures, 2016). Ao mesmo tempo que é um filme que joga luzes na trajetória de mulheres negras brilhantes, mas pouco conhecidas, é também um filme covarde, que fica passando pano pros brancos racistas do filme, atribuindo-lhes méritos, protagonismos e, com isso, afagando os espectadores brancos. Nesse aspecto, não há como não sentir saudade dos filmes icônicos do Blaxploitation, que não tinham receio em vilanizar personagens brancos”, completa o crítico.

estrelas além do tempo

Protagonistas de Estrelas Além do Tempo

Eu costumo participar bastante de eventos de audiovisual e sempre noto algumas diferenças. Em ambientes como festivais de cinema e mostras, encontro alguma diversidade, não muito expressiva, mas existe. Talvez por que estes eventos apresentam e premiam justamente produções que não chegam ao grande circuito comercial de cinema. São filmes restritos basicamente à festivais e que tratam assuntos relacionadas ao discurso de esquerda e das minorias como, por exemplo, questões raciais e sexuais.

Nas cabines de imprensa, evento em que são exibidos os lançamentos dos cinemas para jornalistas e críticos, e que abarca quase majoritariamente do cinema industrial norte americano, do grande mercado do cinema, esta diversidade desaparece tanto nas telas quanto dos meus colegas de profissão. Em sua maioria, os presentes nas sessões reservadas à estes profissionais, são, mais uma vez, homens brancos. Temos a presença de algumas mulheres, eu e mais algum negro (que até hoje eu não conheci, mas que pode existir e eu talvez não tenha esbarrado).

Acredito que a problemática seja algo anterior à chegada de alguém negro a um veículo de imprensa, sobretudo os de grande porte e alcance. Mas, honestamente, não saberia indicar de maneira precisa onde está o problema e, consequentemente, a solução do mesmo. Seria culpa de nós mesmos, negros, que não ficamos à vontade em tentar chegar estes lugares ou é o próprio sistema que cria armadilhas para nos impossibilitar de chegar lá? Gosto de pensar que essa segunda hipótese está superada de uma forma geral. Claro que existem alguns indivíduos por aí ainda acreditando na superioridade branca, mas são poucos — espero.

estrelas além do tempo oscar

Como eu me sinto quando… Cena de Estrelas Além do Tempo

Confesso que já tive problemas com a primeira opção que mencionei acima. Muitas vezes não me senti à vontade, ao menos em primeira instância, de estar em locais com a maioria branca ou que eu percebesse ser o único negro. É uma sensação bem estranha e, mesmo que o preconceito não surja de fato, sentia um julgamento através de olhares. Agora já estou mais acostumado à situações como esta e tento relevar, imagino ser algo da minha cabeça mas no início sempre tinha essa neura. Heitor me contou que nos locais frequentados por ele, o cenário não é muito diferente.

Heitor Augusto destaca que a situação se repete em São Paulo, “tanto nesses espaços em que se misturam críticos e jornalistas culturais — caso das cabines — , como nos espaços mais alternativos ou contra-hegemônicos (revistas eletrônicas, por exemplo). Mais a questão de raça na crítica se desdobra em vários aspectos. Esse que você apontou diz respeito à subrrepresentação (assim como de mulheres, que mesmo sendo maioria nas faculdades de jornalismo ou pelo menos 40% das turmas de cinema, historicamente pouco ocupam esse lugar de fala pública sobre filmes)”, afirma categoricamente.

Mas há outros tópicos pra se desdobrar. Por exemplo: a tradição cinéfila é completamente masculina, heteronormativa e branca. E isso influencia em quais filmes são tidos como os obrigatórios, influencia na maneira em que vemos filmes, na maneira em que hierarquizamos conhecimento…Esse aspecto mais epistemológico da discussão está presente não é de hoje (ainda que no Brasil a sensação seja de total recusa em discutir isso frontalmente). Basta observar as tensões trazidas pela crítica feminista e pela crítica negra. Por aqui, contudo, ainda predomina uma falsa percepção universalista das coisas”.  

Hoje penso que mereço estar ali tanto quanto os demais. Devemos chegar a qualquer lugar que for não pela cor da nossa pele, escolha sexual ou qualquer coisa do tipo, mas sim, pelo que fizemos para chegar até ali e o trabalho que produzimos. Minha formação, por exemplo, me capacita tanto quanto os demais membros, sendo negros ou brancos. Tenho graduação em Cinema, fiquei por volta de quatro anos estudando a sétima arte, e ainda completei e continuo completando meus estudos com outros cursos na área e sendo cinéfilo. Se hoje estou onde estou é por que batalhei muito para isso e soube aproveitar as oportunidades que a vida me deu. No Oscar ou em qualquer instância, a cor da pele não deve valer mais do que talento ou dedicação para garantir um trabalho bem feito.

Ao ser premiada com o Emmy de melhor atriz em 2015, sendo a primeira negra a ganhar o premio, Viola Davis fez um discurso que ilustra bem este cenário, apesar de ser outra premiação que não o Oscar. E é com ele que termino nossa conversa. É tempo de cruzar linhas e superar antigas barreiras mesmo com poderosos criando muros e se cercando do outro lado da fronteira.

https://www.youtube.com/watch?v=Dfpcy7oc1-w