Por Rafael Franco
Em cartaz no cinema – na época em que escrevo – está Quatro Vidas de um Cachorro (2017), que teve um marketing negativo, pois vazaram imagens de maus tratos a animais. Não é de hoje a controvérsia sobre a segurança dos animais nas telonas, existem muitas mentiras por trás de “nenhum animal foi ferido durante as filmagens”. Agora, e quando acontece o oposto? Como reagir quando os animais praticam maus tratos aos humanos durante um filme? Acredite ou não, este caso existe, trata-se de um filme chamado Roar (1981), e… acredite ou não, o marketing do filme enfatiza a gama de “acidentes” sofridos pela equipe, incluindo os atores principais.
Antes de tudo, nenhum animal foi ferido durante a produção deste filme, portanto não há motivos para boicote. Várias questões filosóficas me vêm à cabeça: que mente doentia pensaria num filme deste? Como? E por quê?
O filme foi idealizado por Noel Marshall e Tippi Hedren – casados na época – enquanto esta trabalhava na África, no filme Satan’s Harvest (1970), ao explorar uma reserva de caça, o casal encontrou uma alcateia de leões morando numa casa abandonada, que antes pertencia ao diretor da reserva, a partir desta ideia Marshall começou a escrever o roteiro. Isso é o que Hedren diz em entrevistas e no site oficial, mas a minha teoria é que a moça não bate muito bem da cabeça desde que foi submetida à filmagem de uma cena em Os Pássaros (1963) na qual, durante uma semana foi servida às gaivotas.
Hedren e Marshall investiram do próprio bolso para financiar este filme, a partir dos lucros gerados por filmes como The Harrad Experiment (1973) e O Exorcista (1973), nos quais Marshall fora produtor executivo, e para complementar a verba, hipotecaram o rancho, e venderam a casa de 120 hectares no San Fernando Valley. Ao final, o filme foi feito com um orçamento de 17 milhões de dólares, um dos filmes independentes mais caros já feitos até então. Após captar a verba, o passo seguinte era reunir os grandes felinos e treinadores, quando estes ouviram que o casal pretendia ter vinte ou trinta feras convivendo, a reação foi explodir em risadas. Quem entende um pouco sobre estes predadores sabe que o instinto os leva a lutar entre si para manter a dominância. Para estabelecer uma certa harmonia entre os animais, os mesmos teriam de ser introduzidos uns aos outros com certa cautela, de preferência criados desde filhotes. Hedren e Marshall adquiriram vários felinos de zoológicos, pet shops, e até de proprietários. Cerca de 150 animais foram usados no filme, incluindo dois elefantes africanos, leões, tigres, leopardos, chitas, pumas, e jaguares.
No filme, Noel Marshall interpreta Hank, dono de uma reserva que vive contente com seus animais selvagens, até que um dia sua esposa, Madelaine, e três filhos (Melanie Griffith, filha de Tippi Hedren; Jerry Marshall e John Marshall, filhos de Noel Marshall) chegam para visitá-lo. Após alguns desencontros, a família chega em casa e a encontram deserta, depois de se acomodarem, os “gatinhos” de 200kg entram como se fossem os donos do pedaço. Pensando bem, Roar quase não tem história, além de algumas cenas chave em que os humanos contracenam com os gatos. A história não faz tanto sentido se pararmos para pensar, as atuações são ruins, mas isso não diminui em nada a experiência que o filme proporciona.
É difícil ter uma ideia do tom do filme, o que dificulta encaixá-lo numa categoria, às vezes é leve, e os “gatinhos” parecem querer apenas brincar, e ao mesmo tempo o filme te deixa apreensivo, pois essas brincadeiras com os dentes têm conseqüências desastrosas para o “brinquedo”. Com essa divergência, o filme já foi classificado como uma comédia, um thriller, ou horror (para a equipe, com certeza foi um horror), a única coisa que não podemos discordar é que este é um filme único, jamais haverá uma seqüência, ou um remake, atores comuns jamais arriscariam a própria vida (ou a vida dos seus filhos) num filme como este – isto me faz admirar os riscos que Noel Marshall assumiu, sendo o produtor, diretor, e ator principal, e separando brigas violentas entre dois leões machos sem qualquer segurança.
Marshall queria que seu filme capturasse com naturalidade o comportamento e a personalidade dos bichinhos, ou seja, não queria que os mesmos fossem adestrados para reagir como um animal de circo, mas que fossem naturais como num documentário da vida selvagem, por causa disso, o diretor até dá os créditos aos animas como roteiristas e diretores. O comportamento imprevisível dos gatos resultou em vários atrasos nas filmagens, às vezes os animais praticavam o “deboismo” com as câmeras rodando, outras vezes a ação acontecia e a produção não estava pronta para filmar. Para não perder nenhum momento, cinco câmaras gravavam simultaneamente enquanto camufladas para não aparecerem nas cenas. Além do fator imprevisibilidade, a preparação dos equipamentos, os constantes ataques, seguidos de cuidados médicos, recuperação dos enfermos, e uma enchente – esta foi a principal causa, vários animais morreram no incidente, e o set foi completamente destruído – também contribuíram para os atrasos. O que deveria levar apenas seis meses, levou sete anos de produção.
Como vimos no marketing do filme, 70 membros da produção (incluindo os atores) sofreram lesões graves. Jan de Bont, o cinematografista iniciava sua carreira neste filme – dirigiu Velocidade Máxima (1994), e… praticamente este é único bom filme como diretor – foi mordido na cabeça por um leão, quase foi escalpado, e precisou de 120 pontos; Melanie Griffith precisou de 50 pontos e uma reconstrução facial, correu o risco de perder um olho, felizmente ela se recuperou sem ficar desfigurada. Em outra ocasião, que está no filme, um leão a agarrou pelo cabelo e não quis largar; Tippi Hedren fraturou uma perna caindo das costas de um elefante quando ela estava em suas costas. Hedren precisou de 38 pontos na nuca, depois de uma mordida de uma leoa; John Marshall precisou de 56 pontos depois de uma mordida de leoa; Noel Marshall foi atacado por leões tantas vezes que ele eventualmente foi diagnosticado com gangrena. Em outra ocasião, foi arranhado por uma chita enquanto protegia os animais de um incêndio. Perdoem minha piadinha de mau gosto, mas este é o único filme em que os envolvidos quase perderam a cabeça.
Roar foi lançado em novembro de 1981 na Austrália, neste mesmo ano foram lançados outros filmes envolvendo ataques de leões, Savage Harvest (maio) e The White Lions. Embora nenhum destes dois filmes tenham ofuscado o filme de Noel Marshall, pois os mesmos não foram exibidos na Austrália neste mesmo ano, as bilheterias de Roar foram péssimas. No ano seguinte o filme chegou aos cinemas da Dinamarca, Holanda, Alemanha Ocidental, Espanha, Japão, e Colômbia, também com uma bilheteria desastrosa. Depois de algumas exibições nos anos seguintes na França e Coréia do Sul, o filme foi engavetado e nunca chegou ao conhecimento do grande público nos Estados Unidos, tampouco do Brasil, não se surpreenda caso esta seja a primeira vez que esteja lendo sobre este filme. Felizmente em 2015 a distribuidora Drafthouse Films decidiu lançá-lo em festivais e cinemas independentes nos EUA e Canadá, além do seu lançamento oficial em DVD e Blu-Ray. Como não existe um lançamento oficial no Brasil, o filme pode ser visto por meios alternativos, ou adquirido em DVD no site oficial, compatível com todas as regiões.
O casamento de Noel Marshall e Tippi Hedren terminou em 1982, a atriz continuou, e continua, levantando fundos para os cuidados e proteção dos leões deste filme e seus descendentes na Reserva Shambala, na Califórnia. Além disso, Hedren co-escreveu o livro The Cats of Shambala (1985) sobre a problemática produção deste filme. Atualmente, tanto Hedren quanto sua filha, Melanie Griffith, são ativistas dos direitos dos animais, ambas não participaram das campanhas de divulgação do relançamento em 2015, e protestam à criação de animais selvagens em ambientes domésticos. Ironicamente, Hedren protesta contra aquilo que ela era no passado, vários leões foram criados em sua própria casa, antes de serem levados às filmagens de Roar, Hedren adotara um destes leões como seu bichinho de estimação, Neil.
Palavras não são suficientes para fazer jus ao filme mais louco que eu já tive o prazer de ver em toda minha vida. Noel Marshal foi (faleceu em 2010) o homem mais corajoso da face da Terra, e Tippi Hedren… a Academia deveria criar a categoria de Melhor Atuação em Condições Extremas para lhe dar a estatueta, ainda dá tempo. Altamente recomendável para fãs do cinema extremo.