O dia em que ele me deixou foi o dia em que eu morri. Mas então eu renasci. Como uma bruxa.

The Love Witch é um filme de 2016, porém, por alguma razão, a fala de Elaine Parks, sua peculiar, bela e levemente assustadora protagonista, ganhou as redes em meados de 2021. Em especial o Instagram. Foi por lá também que tive contato com o longa pela primeira vez ao me deparar com sua estética sessentista (mas só a estética, a história se passa nos tempos atuais) que mescla elementos do burlesco e do Camp com um visual que beira ao terror trash.

Demorou para eu entender que se tratava de uma obra atual e não alguma pérola retrô do cinema que a internet só havia descoberto agora. Escrito, dirigido e produzido por Anna Biller, a obra acompanha a história de Elaine Parks, uma bruxa moderna que usa feitiços para fazer com que homens se apaixonem por ela. Obcecada pelo amor ideal, Parks acaba gerando resultados desastrosos para si mesma e para aqueles que cruzam seu caminho.

A primeira coisa a se destacar em The Love Witch além de sua estética é Samantha Robinson, a Elaine. Ainda pouco conhecida, a atriz possui uma aura que chama a atenção do espectador antes mesmo de saber sobre o que o filme se trata. Escolha acertada, ela parece de fato ter saído das telas de programas dos anos 1960 e vindo diretamente para a atualidade.

Sua maneira de retratar a protagonista também é bastante compatível com o tom da obra. Trata-se, basicamente, de um thriller sexual com cores que remete aos clássicos em Technicolor e gravado em 35mm que usa tal estética para abraçar questões recorrentes e atuais. Apesar do que possa parecer à primeira vista, The Love Witch é, na verdade, uma provocação feminista sobre como homens tendem a enxergar as mulheres e seus desejos, sonhos e vontades. É também uma sátira que contrapõe o que costumamos ver quando a mulher é retratada sob uma ótica masculina.

“O dia em que ele me deixou foi o dia em que eu morri. Mas, então, eu renasci. Como bruxa”. Trecho em que protagonista fala sobre como renasceu após se tornar bruxa acabou ganhando notoriedade nas redes sociais, mas o filme ainda é pouco conhecido.

A questão do male e female gaze – ou olhar masculino e feminino – é algo levantado pela diretora. Não se trata apenas da visão de Biller em relação a temas como amor, sexo e desejo, mas também a maneira que a cineasta entende que diretores costumam retratar essas mesmas questões. Em artigo para a Collider, Violetta Katsaris relembrou o posicionamento de Laura Mulvey – que cunhou o termo male gaze – a respeito de como a indústria cinematográfica se pautava a partir de uma perspectiva masculina, onde a mulher é um objeto sexual, um ser sedutor que, ainda que provida de outras características, tem como objetivo final conquistar e ser consumida por um homem. Além de bastante sexista, tal visão insere todo o sexo feminino em uma visão cis-heteronormativa, nos reduzindo a seres criados com o objetivo maior de agradar a um homem (algo que, inclusive, já abordei anteriormente no vídeo sobre as Manic Pixie Dream Girls). Dessa forma, o female gaze veio como uma resposta a tal parâmetro que persiste não somente no audiovisual, mas nas mais diversas artes.

A partir dessa visão, que tem como principal reivindicação a maior participação de mulheres não somente na direção, mas também em todas as outras áreas da produção, incluindo fotografia, roteiro, produção, etc. O intuito é que, assim, as personagens femininas sejam mais humanizadas, se aproximando das mulheres reais e diminuindo a sexualização, abordando esse aspecto sob uma perspectiva de dentro para fora e não mais do observador masculino.

A questão de mulheres e também minorias estarem por trás de obras que as representem não é nova. Parece óbvio, mas é preciso repetir que a representatividade importa e para além das lentes. Não basta somente colocar pessoas diversas em frente às telas, é preciso que elas estejam nos bastidores. Daí o incômodo, por exemplo, quando alguns diretores se põe na posição de narrar o ser/se descobrir mulher na sociedade, assunto que eu já abordei antes.

Resumindo, a mensagem aqui é bastante clara: sob o olhar masculino, mulheres buscam o amor e o sexo de maneira a agradar ao homem. Não se trata de uma troca ou a busca pelo próprio prazer e realização. Assim como Elaine, as mulheres se esforçarão ao máximo para entregar esse amor ideal para seu parceiro, de forma que ele a ame e aceite por completo, sem nunca deixá-la. Como se mulheres só desejassem o amor ou o prazer por estes serem ferramentas para conquistar e manter um homem, não por ser do seu próprio interesse. E como se a vida de uma mulher revolvesse ao redor de encontrar, amar e servir um homem. Quem assiste ao filme levando essa ideia ao pé da letra pode achar que a jovem bruxa é um completo retrospecto em relação a como personagens femininos poderiam ser retratados. E é aí que está o mais interessante da obra.

Não só Elaine, mas outras mulheres aparecem como a “personificação do desejo masculino”.

Por meio da excentricidade de sua protagonista, Biller repensa o arquétipo da femme fatale, usando a bruxaria como metáfora tanto para as mulheres quanto para o medo que homens têm especialmente de mulheres que se encaixam exatamente no que seria o culminar de seus desejos. É curioso como Elaine passa a mudar sua vida e conhece a bruxaria quando é abandonada pelo marido (que acaba por morrer em circunstâncias estranhas).

No entanto, o que poderia ser uma jornada de empoderamento, na verdade, se torna uma busca sobre como se aprimorar para ser uma melhor amante e esposa. Há, claro, competição feminina uma vez que Elaine enxerga a possibilidade de seu grande amor no marido da amiga Trish. Como é de esperar, a culpa dele se interessar pela recém-chegada não é de sua falta de caráter, mas sim de Trish, que não soube cuidar direito do marido. Algo falado pela própria Elaine em um dos diálogos entre ela.

Tais cenas, aliás, até geram certo incômodo ao pensar que, de fato, há inúmeras obras que retratam uma situação assim. A culpa de uma traição recai sobre a esposa que de alguma forma foi ineficaz e não soube cumprir seu papel ou na amante, que não respeitou o compromisso alheio, mas nunca ao homem que traiu. A maneira como Elaine é às vezes julgada por seu conforto com a própria sexualidade – como na cena em que os moradores querem linchá-la e passam a atacá-la, chamando-a, simultaneamente, de bruxa e promíscua – é outro outra amostra de como mulheres não podem ser seres sexuais e muito menos expressar essa faceta. O único ambiente em que uma mulher pode – e deve – ser livre sexualmente é no lar, com seu marido e visando agradá-lo.

O tom sexy e macabro do longa acompanham também um outro lado da protagonista. Guiada por sua busca a algo pouco real, Elaine se depara com frustrações que nem mesmo sua magia consegue resolver. Aqui, temos uma virada em relação ao que a história nos mostra: apesar de sua procura e convicção, ela se sente entediada pelos homens que seduz, não encontrando em nenhum seu ideal de amor – e de sexo. Se para aquele que atender suas expectativas ela tem a intenção de ser apaixonadamente devotada, para os que a frustram o destino é um pouco mais cruel.

Dessa forma, somos apresentados ao lado vilanesco de Elaine, a parte de si que faz com que os homens teimam. Afinal, nesse ponto ela representa uma mulher segura de si, que sabe o que quer e não se dá por satisfeita com menos do que isso. O que leva seus parceiros a uma crise emocional e identitária: o que fazer quando a mulher perfeita não quer você?

The Love Witch é uma viagem psicodélica sobre desejo, amor e sexo.

Aliás, não somente Elaine, mas todo o mundo que a cerca – com exceção de Trish, que representa o universo feminino limpo, pudico e correto – mostra desde o início suas peculiaridades e bizarrices. Seu clã, seu apartamento, as festas que participa: tudo parece saído de um sonho envolto em psicodelia.

O exagero nas cores, especialmente na maquiagem, os rituais e encontros passam a impressão de estarmos mergulhados em um universo paralelo em que a lógica que conhecemos não é mais necessária. Uma das cenas que explora isso, aliás, é o momento em que Elaine explora o poder de suas poções em um primeiro encontro. A viagem alucinógena em que o homem com que ela está entra é semelhante àquela que o espectador sente ao mergulhar no universo do longa.

Trata-se de uma explosão de cores e sensações sobre amor, desejo, sexo e empoderamento. Se seus parceiros não conseguem alcançar o potencial que ela procura o azar é deles. É uma loucura doce e sombria que vai envolvendo e confundindo aos poucos tanto quem assiste quanto seus personagens, como se a própria Elaine nos desse um vislumbre de sua mente e seu caos. Mais do que assustar, The Love Witch busca perturbar. E, em seus melhores momentos, consegue.

Infelizmente, apesar da boa construção das mensagens que deseja passar, o longa deixa um pouco a desejar em sua narrativa. Especialmente a partir da segunda metade. O que vinha como algo ágil e fluido acaba se perdendo dentro da própria história. Os encontros e desencontros de Elaine, assim como seu caminhar para a própria perdição começam a colidir entre si de uma maneira confusa para o espectador e a conclusão para alguns arcos fica um tanto forçada. Porém, é interessante acompanhar a evolução de Elaine e sua jornada, compreendendo que talvez até mesmo uma bruxa do amor obcecada pela paixão ideal pode descobrir que sua maior conquista é a de si mesma.

Apesar de seus tropeços, The Love Witch tem um papel fundamental não somente por ser uma obra independente pensada e dirigida por uma mulher, mas por nos dar a chance de vislumbrar determinadas temáticas por meio do female gaze, algo que, ainda que tenhamos avançado e até vejamos diretoras levando Oscar, está longe de ser o ideal.

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