Por Rafael Ferreira
Passeando pela sessão de livros infanto-juvenil de uma livraria encontro um título que me traz um sentimento de nostalgia, trata-se de Meu Pé De Laranja Lima. Escrito por José Mauro de Vasconcelos, em 1961, conta a história de Zezé (não é o di Camargo), um menino de família pobre que sonha em ser escritor que, menosprezado pela família, encontra conforto em um pé de laranja lima e na amizade com um português.
A história de Zezé rendeu várias adaptações: três novelas, uma em 1970 exibida na extinta TV Tupi (com Eva Wilma como Godóia), ganhou outras versões em 1980 e em 1998, ambas pela Rede Bandeirantes, esta última foi reprisada na Rede Vida em julho de 2013; um mangá publicado na Coréia do Su,l em 2003; dois filmes, o mais recente lançado em abril de 2013 (de Marcos Bernstein, com João Guilherme Ávila, filho do cantor Leonardo, como o protagonista), e o marcante lançado em 1970, produzido por Herbert Richers.
Entre os fãs, talvez a característica mais marcante do filme seja: o bom coração de Zezé, mesmo em atos considerados errados, como roubar uma flor para agradar a professora, trabalhar para comprar cigarro (já mencionei que ele tem apenas 5 anos?) para dar de presente ao seu pai. E de fato ele tem um bom coração, mas Zezé também tem seu lado mal, que ele descreve como um diabinho que mora dentro dele e lhe manda fazer travessuras. Vale lembrar que o personagem é apresentado fazendo traquinagem, cortando um varal cheio de roupas a secar. Além dessa, Zezé também prega um susto em alguém utilizando uma meia-calça fingindo ser cobra (quem nunca?). Embora seja hilário ver essas travessuras e as reações, as conseqüências para o personagem não são nada agradáveis, pois algo que fortalece o filme é o fato de se passar numa época em que bater numa criança e educá-la é quase a mesma coisa, tornando isto algo recorrente na vida de nosso querido protagonista endiabrado.
Se o diabinho manda Zezé fazer travessuras, outra entidade lhe dá a ferramenta que lhe permite suportar sua condição humilde, a imaginação fértil. Quando criança, somos capazes de ver um oceano repleto de tubarões e jacarés dentro de uma piscina, podemos jogar futebol no Maracanã localizado naquele terreno baldio, pulamos tão alto numa cama elástica que quase podemos tocar a lua, retirar um pedaço dela e comê-lo, pois como todos sabem, a lua é feita de queijo. Mas não só as crianças no filme devem utilizar este recurso, o público também deve usar sua imaginação para ver o que Zezé vê: uma Europa, o bondinho, e um Jardim Zoológico no quintal de sua casa, e um pé de laranja lima que fala e dá conselhos. E por falar em mente fértil, a imaginação é algo essencial para a profissão dos sonhos de Zezé, ser poeta, e para alcançá-la o próximo passo que ele dá é aprender a ler e escrever precocemente, e o passo seguinte é tirar uma foto usando gravata de laço, pois ninguém é poeta sem isso, ele afirma ao seu irmão Totoca.
Na família, o irmão mais velho cuida do irmão seguinte, sendo assim, as mais velhas Jandira e Godóia cuidam dos mais novos, Totoca cuida de Zezé (o irmão mais velho se encarrega de desmontar e montar o Jardim Zoológico para a mudança, mas num momento crítico pede para que o mais novo o defenda de um valentão), e Zezé cuida do mais novo, o Rei Luis. Sua relação com seus irmãos varia entre os cuidados constantes com o pequenino, algo que nos faz ter um pouco de esperança na humanidade, e a crueldade com que Jandira o trata nos dá vontade de soltar os cachorros em cima dela, e quanto aos outros irmãos, Godóia e Totoca, eles se desentendem com Zezé de vez em quando, tornando sua relação mais tridimensional, mas nada que nos faça odiar seus personagens. Mesmo seu pai, sendo o autor de marcas no corpo de Zezé, não deixamos de sentir pena do pobre coitado que não consegue arrumar um emprego.
Creio que este filme costumava ser exibido na TV próximo ao natal por despertar sentimentos de solidariedade. Enquanto muitos têm uma mesa farta e vários brinquedos, Zezé e sua família se contentam com a boa e velha rabanada e o silêncio da noite, quebrado apenas por fogos de artifício, construindo uma das imagens de natal mais triste já apresentada no cinema. Em segundo lugar, a próxima imagem de natal mais triste do cinema acontece um pouco antes, quando Zezé leva Luis para a distribuição de brinquedos e chega atrasado. E o ouro vai para a reação do pai de Zezé ao ouvir o que provavelmente é a pior coisa que um pai poderia ouvir, principalmente na noite de natal. Embora o filme tenha um tom melancólico, o diretor Aurélio Teixeira (que também atua no filme) sabe criar momentos de pura magia, transmitindo a felicidade sentida nos simples prazeres da vida, como “morcegar” na traseira do carro.
Podemos fazer uma comparação entre a época retratada no filme e os dias atuais, algumas coisas nunca mudam, como a facilidade que as crianças têm em aprender músicas de linguagem obscena sem saber seu verdadeiro significado, como as que Zezé aprende com o Sr. Ariovaldo, o vendedor de letras de música dos últimos sucessos do Chico Viola e do Vicente Celestino. Devo transcrever uma dessas músicas para que fique claro o quão obscenas são comparadas às que nossas crianças cantam escondidas de seus pais:
“Tens no teu olhar a luz celestial que me faz crer…Ver uma irradiação de estrelas a brilhar no espaço sideral. Juro até por Deus, que mesmo lá nos céus não pode haver olhos que seduzam tanto quanto os teus. Oh! Deixa que teus olhos fitem bem os meus pra recordar a história triste de um amor nascido em ondas de luar… Olhos que dizem bem e sem poder falar o quanto é desditoso amar.”
Para muitos, O Meu Pé De Laranja Lima é um filme sobre a inocência de uma criança, para outros é um filme sobre solidariedade, ou sobre esperança, e também pode ser um filme sobre a amizade, seja ela entre um menino e sua árvore, ou entre um menino e um homem adulto, que poderia ser interpretado com malícia nos dias atuais. A amizade entre Zezé e Portuga (Aurélio Teixeira, sim, o diretor do filme) é algo improvável, e começa como uma inimizade quando o velho é jurado de morte pelo “molecote”, mas que se solidariza ao vê-lo ir para a escola mancando após ferir gravemente seu pé com caco de vidro, e resolve lhe dar o tratamento mais humano possível e levá-lo ao hospital. Logo os dois se tornam grandes amigos, fazem piquenique juntos, pescaria, compartilham segredos, e até mesmo o carro. E por falar em compartilhar segredos, o que há de mais maduro neste filme é a forma que ele trata os desejos mais íntimos e secretos de uma criança, como o desejo de matar seus próprios pais, e por sentimentos coléricos como este, se sentindo a pior pessoa do mundo, uma ideia que consome seu coração o levando a desejar suicídio. O filme trata de tais sentimentos sem medo de parecer cruel ou sério demais para uma criança.
Durante o período em que O Meu Pé De Laranja Lima era produzido, o Brasil ainda sofria com a censura e com o regime militar, e por este motivo a produção cinematográfica havia se dividido em duas vertentes: o cinema independente marcado pelas produções underground das pornochanchadas, que muitas vezes não chegava ao grande público; e a outra vertente contrastava por alcançar um público maior, por utilizar uma linguagem mais popular e não abordar questões políticas, representada por já veteranos da década de 1950, como o próprio produtor, Richers, com suas produções que lembravam as chanchadas do Cinema Atlântida, mas com menos glamour. Nesta época também começam a surgir novos cineastas influenciados pelo Cinema Novo, como Arnaldo Jabor, Carlos Diegues e Hector Babenco.
O fato é que a cada dez anos, O Meu Pé De Laranja Lima ganha uma nova roupagem nas telas do cinema e/ou da televisão (aguardem a chegada dos anos 2020), mas esta obra dirigida por Aurélio Teixeira merece ser redescoberta pelo novo público.
Veja o trailer: