Faz um tempo que Steven Spielberg não faz um filme realmente relevante. Um dos últimos talvez seja O Resgate do Soldado Ryan (1998). Aliás, guerras costumam ser tema constante na filmografia do diretor em uma competição acirrada com filme de alienígenas. Inclusive, o segundo filme que ele rodou, ainda com 13 anos de idade, chamado Escape to Nowhere (1961), tinha como tema a Segunda Guerra Mundial. Parte de seu interesse pelo assunto, veio por ouvir seu pai e seus amigos, que tinha participado do conflito, conversarem a respeito.

Spielberg e Hanks no set de O Resgate do Soldado Ryan

“[Meu Pai] frequentemente se reunia com seu grupo de combate, então tive diversas oportunidades de ouvir homens adultos contando histórias de guerra – e elas era muito diferentes do que Hollywood me mostrava. Por muito tempo, preferi acreditar no cinema, e não em meu pai e seus amigos: as histórias que eles contavam eram incrivelmente duras. Um dia, porém, percebi que eles é que estavam certos e Hollywood vinha me enganando.”

(Trecho da entrevista de Steven Spielberg á revista SET, setembro de 1998)

 

O Resgate do Soldado Ryan já inicia com um chute na porta com a cena do Dia D. O dia em que os aliados (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, parte livre da França, Polônia, Austrália, Bélgica, Nova Zelândia, Holanda e Noruega), invadiram o litoral da França ocupada pelo Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Ouso dizer que esta é uma das melhores cenas já filmadas. É como se estivéssemos lá, no meio do conflito. Spielberg esmiúça os mínimos detalhes. Em um dos momentos, ao desembarcarem dos barcos na praia a câmera mergulha junto com os soldados. Entre um mergulho e um respiro, é possível ver uma bala cortando a água diante dos nossos olhos. A primeira vez que vi isso pensei: “(palavrão) quem faz uma coisa dessas?”.

A partir daí, vemos diversas coisas acontecendo simultaneamente: um soldado com um lança chamas explodindo ao ser atingido por uma bala em seu tanque de combustível, um outro caminhando em meio ao caos procurando algo (que mais a frente descobrimos ser seu braço recém-decepado), entre outras coisas. Cada vez que revejo reparo algo novo. A montagem dessa cena específica é feita a partir do olhar de Tom Hanks sob aquele cenário infernal.

Em meio a esse caos, Hanks e sua equipe precisam planejar uma forma de virar o jogo. As discussões dos próximos passos se desenvolvem de uma maneira tão calma que eles parecem estar numa sala de reuniões com um delicioso ar condicionado soprando suas nucas. Bom, acho que já deu para entender essa parte. Se não, faço um texto somente sobre essa cena. Vou deixar o link aqui, para você apreciar a sequência completa.

 

“As cenas da invasão são muito violentas”, afirmou Tom Hanks. “Mas nem uma cena sequer é gratuita. Mostramos a bala sendo disparada, que faz um barulhão e um clarão bacanas. Mas mostramos também quando ela atravessa um crânio humano e arrebenta ossos e o cérebro, o que não é nem um pouco agradável de ver.”

Revista SET, Setembro de 1998

A grande trama do filme é a busca pelo soldado Ryan do título. Depois de perder três irmãos na guerra, ele ganhou o direito de voltar para casa e evitar que sua mãe fique sem nenhum filho. Com isso, Capitão Miller (Hanks) é escolhido para, junto com sua equipe, encontrar e salvar Ryan em meio à Segunda Guerra Mundial. O famoso “procurar agulha no palheiro”.

Capa da Revista SET dedicada a O Resgate do Soldado Ryan, de Setembro de 1998, que eu tenho em minha coleção.

O dilema do filme vai no sentido de responder a questão: vale a pena arriscar a vida de vários soldados para salvar um? O que Ryan teria de tão especial assim que mereça tal esforço? Além disso, o filme discute qual o sentido de uma guerra, os alemães que matavam eram tão desalmados assim no campo de batalha? E o que dizer dos americanos então?

Como Spielberg é americano, obviamente ele vai puxar uma sardinha para seu lado. Colocando seus compatriotas como mocinhos e usando o famoso clichê da bandeira americana tremulante diversas vezes.  Em contrapartida, nas cenas de combate direto em que dois soldados ficam cara a cara, ele mostra que se os lados fossem trocados, em uma situação como as da cena, a reação provavelmente seria a mesma.

É interessante ver no filme nomes hoje muito conhecidos pelo grande público despontando como coadjuvantes. Como o caso da rápida aparição de Bryan Cranston da (maravilhosa) série Breaking Bad e Vin Diesel, antes de pilotar carros furiosos, num papel dramático como membro da equipe de Tom Hanks.

Assim como na cena da praia, as demais são muito bem dirigidas. As composições dos quadros me chamam muito atenção. Uma delas é a que a mãe de Ryan recebe a carta comunicando a morte de seus filhos. Assistimos a um carro militar vindo de longe até chegar a porta da casa da senhora Ryan. Quando o carro chega à sua porta, ela cai no chão ao perceber o que estava acontecendo. No plano, podemos ver à esquerda a reação da senhora à chegada dos visitantes e à direita, é possível ver um porta retrato mostrando os quatro irmãos com roupas militares. Que composição, senhores. Dá até um arrepio.

O Resgate do Soldado Ryan

Uma outra qualidade desse filme é a construção dos personagens. As cenas ajudam não só a contar a história, mas também a mostrar um pouco mais de cada um. Como o ambiente de guerra é muito masculino, estamos acostumados a ver os soldados sempre firmes em seus propósitos, sem demonstrar muitas fraquezas. Aqui, os homens choram ou mostram algum desespero somente em momentos extremos, quando estão a beira da morte ou quando passaram muito próximos a isso. Uma das poucas exceções é o cabo Timothy Upham (Jeremy Davies), desde o início do filme ele é mostrado como um cara cheio de sentimentos e, talvez, o mais humano dos soldados.

Uma das minhas cenas favoritas é uma espécie de alívio em meio a tanto tiro, porrada e bomba e é protagonizada por Upham. Em um momento de tranquilidade, os soldados encontram uma vitrola antiga e alguém, provavelmente o próprio Upham, coloca um disco da cantora francesa Edith Piaf para tocar. A música preenche todo o ambiente que, até então, só ouvia sons de armas e os soldados ficam tocados.

É a primeira vez, durante todo o filme, que os soldados dão a devida atenção a Upham, que começa a falar sobre os sentimentos expressos na música e que o afetam. Realmente, esse cara não é para a guerra. Ao contrário, outro soldado começa a contar uma história sobre uma mulher provando um sutiã muito menor que o seu número antes de ele ir para a guerra. Podemos perceber as claras diferenças das personalidades além de, mesmo com histórias tão diferentes, os soldados terem um nível de cumplicidade em que as duas histórias têm espaço para serem compartilhadas.

Vou colocar a cena aqui, porque merece. Como não tem legendas em português, vou transcrever o diálogo logo abaixo para que você entenda, caso não domine o idioma.

Tocando Tu es Partout, de Edith Piaf

CABO UPHAM

“Para mim, você é a vida… Sonho que estou em seus braços.”

SARGENTO HORVATH

Espere. Ela já cantou isso.

CABO UPHAM

É o refrão. “E sussurra ao meu ouvido. E diz coisas que… Fazem meus olhos se fecharem. E isso é maravilhoso.”

SOLDADO MELLISH

Upham… Sinceramente, é muito estranho, mas te acho muito atraente.

CABO UPHAM

Maravilha. É uma canção triste. No princípio ela diz: “E um dia você partiu.

Abandonou-me… e me deixou desesperada. Eu o vejo no céu e em toda a terra.”

SARGENTO HORVATH

Outra canção como essa, e os chucrutes não precisam me matar. Corto os pulsos.

SOLDADO REIBEN

Você é muito estranho, Upham.

CABO UPHAM

Desculpe. Piaf me faz isso.

SOLDADO REIBEN

A canção me lembra… o que a Sra. Rachel Troubowitz me disse quando fui para a base.

SOLDADO MELLISH

“Não me toque?”

SOLDADO REIBEN

Ela é a mulher do síndico. Foi à loja da minha mãe experimentar umas coisas. Ela tem os peitos enormes. Tamanho extra grande.

SOLDADO MELLISH

Extra grande?

SOLDADO REIBEN

São gigantescos.

SOLDADO MELLISH

Não diga.

SOLDADO REIBEN

Eu a convenci a experimentar um tamanho menor. Estávamos no vestuário. Ela tentava se espremer dentro… de uma cinta elástica com sutiã reforçado. A banha se espalha.

SOLDADO MELLISH

Bem apertada?

SOLDADO REIBEN

É lindo. Ela vê que estou com uma ereção maior que a Estátua da Liberdade. E me diz: “Richard, calma. Quando estiver na guerra… se ficar nervoso ou com medo… feche os olhos e pense nestes. Está bem?” Eu disse: “Sim, senhora”.

Pode parecer um trecho meio escroto e peço desculpas se pareceu ofensivo, mas diálogos como esses são comuns ainda hoje no universo masculino. E lembre-se que nessa cena estávamos em 1944, muito tempo antes que nós homens fossemos obrigados a repensar os nossos hábitos. O que acho interessante aqui é justamente a cumplicidade entre os soldados. Cada um tem sua forma de lidar com o momento, mas perceba que nenhuma voz, nem a do Cabo Upham, visto como mais fraco pelo grupo, deixa de ser ouvida. Todos os momentos anteriores do filme contribuem para que esse diálogo e essa cumplicidade sejam possíveis mesmo num cenário tão devastador.

Spielberg e Damon no set do filme

“Durante as aulas de história, a gente aprende que um número de pessoas morreu em tal dia em tal batalha, mas é muito diferente quando você participa de um filme como este” explica Matt. “É uma experiência visceral. Foi a primeira vez que vi um filme esquecendo que estava nele”.

 

Matt Damon, Revista SET, Setembro de 1998.

Sério, esse filme tem tanta coisa que merece ser dita que poderia ficar aqui para sempre falando a respeito. Acredito que ele está para além do que um simples filme de guerra e ousaria colocá-lo ao lado de outras grandes obras do gênero como Apocalypse Now (1979) e Nascido para Matar (1987). 

 

Bora voltar a fazer coisa realmente boa, Spielberg?

A fotografia de O Resgate do Soldado Ryan é abordada em detalhes no curso Direção de Fotografia, ministrado pelo professor Kiko Lourenço. Mais informações no link abaixo.

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