A Segunda Guerra Mundial acabou em 1945 com o lançamento de duas bombas nucleares. O acontecimento se tornou um marco da história como exemplo de como o avanço tecnológico não é, necessariamente, algo positivo para a humanidade. Nos anos seguintes uma clim de tensão tomou conta dos EUA, que chegou ao extremo devido aos acirramentos com a União Soviética.

A cultura da época personificou esse ambiente, por meio da ascensão de obras que projetavam um futuro desolador e sombrio, imaginando invasões alienígenas que poderiam roubar as nossas armas ou a nossa mente. Até os trabalhos que não eram sobre extraterrestres, mas focavam em relações humanas ou pesquisas científicas, transmitiam uma paranoia característica da época por apresentarem violência pesada, mutações genéticas e insetos gigantes.

Dito isto, vamos comentar duas obras de ficção científica características dessa época. A partir de duas diferentes linguagens – os quadrinhos e o cinema – artistas exploram sentimentos e paranoias semelhantes, mas seguindo as limitações e recursos de cada meio. Dessa forma, vamos analisar a coletânea Os Morcegos Cérebros de Vênus e Outras Histórias, que reúne histórias curtas lançadas  entre 1939 e 1953, e Da Terra à Lua, de 1950. Ambas não são produções de grandes orçamentos, mas foram realizados dentro de um ritmo frenético de produção.

O quadrinho: Os Morcegos Cérebros de Vênus e Outras Histórias

Ao lermos as 30 histórias de “Os Morcegos Cérebros de Vênus e Outras Histórias (Editora Mino), voltamos no tempo não somente pelo conteúdo característico das tramas, que devem ser lidas como produtos de uma época, mas também pelo formato e ritmo narrativo desses contos, fornecendo à coletânea um gosto especial.

Explico: os viajantes do espaço, seres gigantes, mutantes genéticos e as criaturas exóticas e escondidas nos recônditos da terra povoam histórias curtíssimas de cinco a sete páginas. Não há tanto espaço para pequenas sutilezas. O mais importante é chocar e criar. O ritmo de muitas histórias segue um caráter épico, no qual os acontecimentos banais são eliminados, para que prevaleça em cada quadro somente o essencial. Assim, o tempo que se passa entre cada quadro pode ser de vários dias e até décadas. Os textos geralmente são grandes, com a forte presença de um narrador que comenta os fatos em um tom desesperador e nada neutro.

Nesse jogo para chamar a atenção do espectador percebem-se duas estratégias principais. A primeira é apresentar no primeiro quadro da história um momento visualmente impactante, mostrando cenas de ação, como lutas ou explosões, que só vão ocorrer no meio da história. A segunda é deixar a história interessante mesmo que o leitor saiba o que vai acontecer posteriormente.

Sobre esses primeiros quadros, é ótimo quando a história inicia com um parágrafo de apresentação em cima da página, mas as últimas palavras não estão dentro dele, porém são justamente o título, com letras em uma tamanho maior e um formato diferenciado, transmitindo uma quebra da ordem estabelecida. Tal recurso é muito usado nas paródias posteriores que tentam emular um efeito de ficção científica dessa época. Aqui o formato existe em sua plenitude, sendo levado a sério e seguindo variados estilos.

O plot twist também é muito utilizado nos finais de várias obras. Essa virada radical da trama pode aparecer no último quadro da história, mas é certa. É como se os autores da época precisassem fazer reviravoltas mirabolantes – estilo M. Night Shyamalan – a cada seis páginas.

Não são todas as histórias que conseguem conjugar essas estratégias perfeitamente. Mesmo com um distanciamento histórico, algumas obras não funcionam completamente. Umas chamam mais a atenção no início, outras no final, e existem aquelas que têm somente certos quadros chamativos. Mas obviamente estamos falando de histórias que eram fabricadas a toque de caixa, então mesmo em suas limitações, essas obras curtas dizem muito sobre uma época e um modo de produção importante culturalmente. Contudo, para além desse valor de pesquisa, muitas histórias ainda são fascinantes (e até chocantes) hoje em dia, podendo entreter o leitor interessado nesse período da ficção científica.

Conteúdo das histórias

Sobre o conteúdo, há uma variação extensa. Há desde histórias que recriam os esquemas de Flash Gordon e Buck Rodgers, com a transposição do cavalheirismo medieval para o espaço, até histórias sobre alienígenas. Em relação a essas mais distantes, podemos citar alguns destaques como Triunfo do terror, logo a primeira, em que seres extraterrestres aprisionam escritores de ficção científica pois acreditam que eles podem prever o futuro em sua criações.

O efeito de conflitos bélicos é uma questão recorrente. Em Cripta do Amanhã, Joe Turner se vê como o único sobrevivente humano depois que a terra foi atacada por forças de outro mundo. “Ensandecido pela solidão”, ele fica alegre ao ter o mundo para si, mas depois enlouquece ao não encontrar outro humano.

As tramas que mais me fascinam são as relacionadas com um mundo social e não tão distante do nosso. Nelas, as descobertas científicas se tornam um meio para preencher, de forma terrível, um vazio pessoal. Em A Mulher Robô, por exemplo, um cientista brilhante cria uma robô somente para lhe amar. No entanto, a sua criação passa a ter uma devoção excessiva, de modo que o atrito entre os dois vai aos limites. Essa história possui alguns quadros com uma violência abjeta que ainda hoje pode chocar.

Em uma quantidade grande de histórias, óbvio que existem algumas difíceis de classificar, mas que ainda carregam a atmosfera pesada daqueles tempos. Em O Planeta Morto, Marte não é um planeta avançado como ocorre em outras ficções, mas sim um grande deserto vermelho, que cria uma aflição terrível nos dois viajantes que chegam lá – antecipando, como bem notou Ciro L. Marcondes, em seu ótimo texto de introdução, algumas ideias do filme Perdido em Marte (2015), de Ridley Scott.

A história que mais gostei foi O Patinho Feio. Nela, um acidente misterioso faz com que um homem fique com a cabeça enfaixada permanentemente. Ousando sair de casa, ele entra em crise com a reação das pessoas e decide se suicidar, mas acaba salvando outra garota que também iria se matar na mesma ponte. Ambos se apaixonam, mas a relação toma rumos inesperados.

O espaço temporal dessa história não é tão longo, fornecendo um ritmo mais harmonioso aos acontecimentos. E a narração é puro primor, com aquelas sentenças e falas pessimistas dignas dos melhores autores pulp. Dois exemplos: “Tudo em mim pareciam entrar em colapso feito uma pilha de ratos”; “O mundo tinha um fedor …  e não conseguia me livrar daquele cheiro”. A arte dos dois trabalhos citados nesse parágrafo são ótimas e detalhistas, com destaque para os rostos dos personagens, sempre em tensão e desconfiança.

 

Boa escrita, boas histórias

Tal qualidade não se repete em toda coletânea. No entanto, se o texto for bem escrito, as histórias conseguem funcionar. Um exemplo disso é O homem que imaginou o monstro, em que o traço não é tão sólido como nas obras acima, mas a trama tem uma premissa super interessante que prende a atenção.

Um popular radialista resolve inventar a existência de um monstro em um zoológico somente para mostrar aos colegas que seus ouvintes acreditam em tudo que ele fala. Depois de instaurar o medo entre a população, vários relatos sobre o monstro inventado começam a aparecer, fazendo com que o próprio radialista vá ao zoológico para provar que o monstro não existe. O primeiro quadro dessa história apresenta um monstro com três tentáculos atacando o radialista. Ainda assim, em suas seis páginas, a trama consegue pegar um caminho mais inesperado ainda, com conotações quase sobrenaturais, como se as fake news fossem tematizadas em um episódio de Além da Imaginação. 

Outra história com traços simples mas bom texto é Estimativa Letal, na qual um frustrado guarda de trânsito do futuro desiste do trabalho para buscar um tesouro perdido com uma mulher que ele foi resgatar. O homem é um cafajeste e há alguns quadros apelativos entre os dois. Porém o mais interessante é o tom do texto, que tem um cinismo típico da narrativa noir, permeada por uma forte erotização e linguagem levemente requintada, ainda que acessível, como quando se comenta que havia silêncio em uma sala visitada pela morte.

A história, inclusive, é como se fosse uma trama noir mas ambientada no espaço, principalmente pela noção de que os personagens não são o que aparentam ser – o que é revelado principalmente na última página, e mais ainda no último quadro (ou seja, plot twist até a última gota).

Lançado no segundo semestre de 2017, Os Morcegos Cérebros de Vênus e Outras Histórias reúne trabalhos  de nomes famosos, como Jack Kirby, Wally Wood e Joe Shuster (um dos criadores de Superman), e também de pessoas desconhecidas, como Sid Cheeck e Vince Fadora. O  letreiramento da edição foi bem trabalhado, seguindo o estilo das letras americanas originais. A publicação é bonita, com capa dura e papel de qualidade.

Ainda assim, se percebem alguns problemas de edição nos textos – principalmente na apresentação – com erros de digitação e repetição de frases ou pronomes. Mas não é algo que incomode durante grande parte das histórias. Ainda assim, essa coletânea tem um valor histórico inestimável, já que publica várias histórias inéditas no Brasil e que iriam ficar esquecidas se não fosse pela iniciativa da Editora Mino. E digo valor histórico pois os principais características temáticas e subjetivas daquela época transbordam em cada uma das páginas.

Ao fazer a passagem para o cinema, o meu objetivo foi também pegar uma obra daquela época, que apresenta todas as limitações e recursos de um filme sci-fi dos anos 1950, mas que ainda assim pode agradar o espectador hoje em dia.

O filme: Da Terra à Lua, de Kurt Neumann,

Da Terra à Lua (Rocketship X-M, 1950), é um ótimo exemplo de obra realizada na Hollywood clássica, em um contexto de produção atribulado e curto, com um orçamento baixo, mas que não envelheceu mal com o tempo. Contudo, ela foi esquecida devido ao lançamento de uma obra, no mesmo ano, com temática parecida, mas com mais recursos: falo do clássico Destino à Lua (1950), obra canonizada pelos fãs de ficção científica por aos seus efeitos especiais e roteiro ambicioso.

Mesmo com as diferenças, vale notar que as duas obras são os primeiros filmes sérios pós-Segunda Guerra Mundial que abordam o tema de viagem no espaço. Eles iniciam um momento especial da ficção científica no cinema, já que na década de 1950 grandes estúdios também iriam lançar produtos do gênero. Contudo, o filme de Neumann me interessa mais não somente por ser uma espécie de primo pobre de Destino à Lua, mas principalmente porque carrega uma sobriedade quase melancólica, com poucos exageros visuais, um ritmo narrativo bem desenvolvido, personagens bem trabalhados, ainda que sucintamente, sendo uma obra de entretenimento bem resolvida.

O filme inicia com os preparativos para a partida de cinco astronautas que serão os primeiros humanos a viajarem para a lua. Devido a um cálculo equivocado e problemas de combustível, o foguete sofre um desvio e vai parar em Marte. O planeta vermelho é um deserto que esconde sob a areia uma civilização em ruínas. O filme tem somente 1h17 e grande parte do tempo de tela ocorre dentro da sala principal da nave. É como se a produção estivesse tentando fazer uma ficção científica espacial ambiciosa, mas sem os recursos necessários para explorar visualmente os detalhes da história.

O futuro projetado está mais nos diálogos do que na imagem, que parece com o mundo ordinário dos anos 1940. A pressa na produção ocorreu pois Da Terra à Lua foi realizado quando o seu produtor ficou sabendo do lançamento de Destino à Lua, que era uma grande produção e prometia ser o primeiro filme que iria retratar séria e cientificamente uma viagem espacial. Para aproveitar todo o burburinho em volta, alguns projetos foram transformados e em dois meses se filmou Da Terra à Lua, para que ele fosse lançado antes de Destino à Lua. Este último possui uma quantidade maior de atores, orçamento alto, efeitos especiais avançados para a época e, provavelmente, diz muito sobre a ficção cientifica dos anos 1950, justificando a sua canonização.

No filme de Kurt Neumann não há nada disso. Aqui, os astronautas usam calças, jaquetas, camisa de botão, guardam capacetes  debaixo da cama e fazem cálculos no lápis e papel. Mas é justamente essa sobriedade que fornece ao filme uma espécie de charme poético e minimalista, pois ela não deixa a obra cair no grotesco ou em megalomanias inalcançáveis.

A falta de orçamento não quer dizer recursos especiais improvisados ou performances exageradas. Há uma harmonia bem construída entre momentos pessoais e burocráticos, porque depois que nos acostumarmos, por vários minutos, com os personagens trocando informações técnicas, quando as suas condições internas e subjetivas aparecem, elas são mais autênticas. E essas cenas precisam realmente convencer, pois durante muitos minutos o espectador somente assiste os personagens observando algo.

Assim, o filme fica mais emocionante quando essa interações internas são voltadas para fora da nave – saindo da burocracia e indo para um campo mais pessoal – ainda que a câmera permaneça no mesmo espaço. Não precisamos ver uma recriação da lua ou da terra para nos conectarmos com o delicado vislumbramento dos personagens diante desses corpos celestes. No caso de Terra à Lua é preciso somente observar os personagens andando de um lado ao outro de uma pequena sala, como se na abertura esquerda desse espaço eles enxergassem a Lua e na abertura direita a Terra, fornecendo uma ótima e simples estratégia narrativa que impulsiona o vai e vem dos atores naquela área limitada, o que torna a cena mais dinâmica.

                        


Isso é quebrado brevemente no final do filme, quando os personagens saem da nave. Sem dar spoiler, o curto tempo dessas cenas externas frustram alguns fãs de sci-fi que buscam um trabalho de criação visual mais bem trabalhado – ainda que de pouco orçamento. Realmente, isso não vai ser encontrado nem nesses minutos finais. No entanto, gostei tanto das cenas internas, que acredito que o filme inteiro poderia ser feito ali. Inclusive, nessas cenas Kurt Neumann ainda apresenta uma composição simples, mas sofisticada, tornando-as mais interessantes visualmente.

Para que essas cenas funcionem, os atores são essenciais. E entre os cinco viajantes, os que melhor seguem a proposta do filme são Lisa Van Horn e Karl Eckstrom, interpretados, respectivamente, com intensa sutileza por Osa Massen e John Emery. Eles, sem diálogos expositivos, convencem como reais pesquisadores e viajantes sem caírem na caricatura dos cientistas loucos. Pelo contrário, eles são pessoas introspectivas e tímidas, que se comunicam sempre num tom contido e sereno, ainda que não estejam isentos de conflitos.

Nesse sentido, um dos assuntos tratados  no filme, pontualmente, é a questão do protagonismo da mulher, já que Lisa é a única pesquisadora mulher, e, desde a primeira fala do filme, há vários momentos em que ela recebe determinadas perguntas somente por ser uma mulher. Mesmo que alguns comentários sejam bem criticáveis, como quando Karl Eckstrom comenta que ela não precisa se desculpar por ter uma intuição feminina – deixando implicita a ideia de que uma mulher não consegue controlar os seus sentimentos – esses questionamentos nunca são colocados de maneira maniqueísta, restando ao espectador a capacidade de criticar esses momentos pontuais.

Mas não são todos os atores que estão bem alinhados. O personagem texano Maj. William Corrigan (Noah Beery Jr.) é um alívio cômico desnecessário, destoando de todo o filme em cena. E desde o início são colocadas pistas do interesse amoroso de Col. Floyd Graham (Lloyd Bridges) por Lisa. O personagem parece mais um homem galanteador do que um viajante do espaço, porém ainda assim a sua relação com Lisa é bem construída durante o curto filme, tornando a sua presença necessária pelo menos para demonstrar um outro lado da personagem de  Osa Massen.

Da Terra à Lua não é uma obra-prima. No entanto, é um filme que gostei muito mais de ver e rever do que vários clássicos sci-fi dos anos 1950. E o seu desfecho é fascinante. Não vou dar spoilers, mas a mensagem do final, criticando os avanços tecnológicos humanos, realmente se tornou um pouco datada, já que foi muito trabalhada nos anos seguintes. Mas o desespero contido dos personagens nos minutos finais é convincente, pois harmoniza bem com todos os elementos que foram apresentados anteriormente. Não saúdo nem tanto o primeiro plano do casal nos segundos finais – que realmente é bonito – porém valorizo mais as costas de  Floyd Graham ao perceber seu fim. Ainda que Da Terra à Lua apresente várias projeções erradas sobre como seria o futuro, acredito que esses anacronismos não prejudicam o filme, pois tudo parece ter uma paradoxal carga de verossimilhança, devido a seriedade, não exagerada, dos acontecimentos abordados.

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