O filho do Superman beijou outro rapaz. Em tempos ideais, esse acontecimento só iria gerar felicidade, pois, afinal, é um bom sinal de diversidade. Mas vivemos em tempos difíceis e, além do entusiasmo positivo, a notícia também gerou, infelizmente, reações homofóbicas e análises profundamente superficiais, nas redes sociais ou em veículos reacionários, com especialistas que nada leram mas falam de tudo.

Não é a primeira vez que isto acontece. Em 1992 foi revelado que o super-herói Estrela Polar, da Marvel, era gay. Mesmo que não seja um personagem mainstream, a notícia teve um certo impacto, gerando variadas reações, desde comentários positivos em editoriais até cartas homofóbicas na sessão de cartas da Tropa Alfa, o grupo do super-herói.

Vale notar que é razoável considerar que reações preconceituosas comuns há quase 30 não seriam tão fortes hoje em dia. Entretanto, as reações à simples notícia da bisexualidade de Jon Kent, o filho do Superman, mostra que isso não mudou. Na verdade, piorou, pois a internet forneceu “espaços” para discursos preconceituosos de pessoas que nunca leram super-heróis ou estudos sobre representação de gênero, mas que comentam ardorosamente esses assuntos sem vergonha alguma da própria ignorância. Também há uma reação negativa em parte do mundo geek que não consegue aceitar a possibilidade de super-heróis além da heteronormatividade, mas, felizmente, esses não são os únicos fãs que existem. Eu não sou.

Um comentário polêmico questionou aonde iríamos parar com acontecimentos como o beijo de Jon Kent. A afirmação é preconceituosa pois indica que o mundo com gays se beijando seria algo negativo, ou que esses beijos podem influenciar os leitores. Mas podemos inverter esse enquadramento: com grandes super-heróis LGBTQIA+ se beijando na tela e nas revistas mainstream, iremos parar em uma sociedade na qual um beijo, independente de quem esteja beijando, seja somente sinal de paixão, amor ou afeto corriqueiro, uma sociedade onde a violência e o ódio gerem mais questionamentos do que toques alheios.

Ainda não paramos nessa sociedade. No lado criativo, há poucos super-heróis gays, tanto no cinema quanto nos quadrinhos, e nem todas as histórias com eles são boas. No lado social, há muitas pessoas que adoram se incomodar com essas transformações.

Entre as pessoas que acompanham cultura pop, um argumento é que a ideologia estaria se destacando mais do que a “aventura” do super-herói. Apesar de bradado como se fosse uma perspectiva avassaladora, o argumento não é novo, e ainda é proferido muitas vezes por quem se submete a uma ideologia dominante, que negar o seu próprio processo de construção a favor de uma falsa naturalidade, como explicou o pesquisador Arlindo Machado, no clássico A ilusão especular, de 1984:

De fato, para que a ideologia dominante possa aparecer como dominante, ou seja, para que ela se imponha como o sistema de representação de toda a sociedade e não de uma classe em particular, ela não pode se mostrar como ideologia. Aqueles que se forjam a ideologia dominante se dizem e se julgam fora dela: a imprensa se diz “objetiva”, a religião se diz “universal”, o sistema política se diz democrático”, a instituição jurídica se diz “igualitária” e a produção intelectual se diz’ ‘científica”. (p. 15)

Pensando no nosso tema, os críticos às novas perspectivas de filmes e quadrinhos também buscam se distanciar da ideologia ao defenderem uma arte “universal”, ou com um rigor narrativo não ideológico, que tenha o “belo” poder de criar uma conexão mais profunda e ampla com as nossas vidas. No entanto, no fundo, essas pessoas estão somente defendendo a ideologia dominante presente nas origens do Super-Herói.

Inclusive, isto demonstra uma certa cegueira, pois os quadrinhos do século XX, desde os medianos até alguns clássicos, estão repletos de ideologia. A grande questão é como os autores conseguiram se articular com as pressões ideológicas que existem em qualquer tempo. Inicialmente, a relação entre arte e ideologia é vista como algo problemático, presente nas obras de propaganda. No entanto, um olhar cuidadoso pode identificar várias casos positivos.

No cinema, por exemplo, autores como Dudley Andrew e Christopher Faulkner identificaram que o suposto humanismo de Jean Renoir, presente em filmes como o belo A grande ilusão, tem uma de suas raízes nas ideologias de esquerda da França dos anos 1930, algo quase sempre apagado nos comentários autorais e universalizantes sobre o importante diretor. Isto não significa que Renoir fez propaganda, mas que se articulou com as ideologias sociais de seu tempo.

Nos quadrinhos, uma certa busca por diversidade já é presente na Marvel dos anos 1960. A ligação dos X-men com o movimento dos direitos civis é clássica. Na década seguinte, o escritor Chris Claremont, responsável principal pelo consolidação dos X-men, se incomodava com a construção limitada das personagens super-heroínas, inclusive da própria Marvel, como a mulher invisível do Quarteto Fantástico. Assim, o autor criou ou reformulou personagens como Tempestade, Kitty Pride e Jean Grey justamente buscando personalidades mais complexas e um novo tipo de protagonismo feminino, tudo em coloboração com roteiristas e editoras como Louise Simonson e Ann Nocenti.

Kitty Pryde, criada por John Byrne e Chris Claremont.

Hoje, a equipe escrita por Claremont se tornou a mais famosa e é amada por muitos fãs, mas ela se destacou por um direcionamento mais enfático a diversidade nos anos 1970 e 1980, um direcionamento que muitos criticam hoje em dia; perceberam o paradoxo? Isto não significa que essas HQs não tenham problemas, mas parte de sua força está na busca por transformações. Ou seja, quem reclama da presença de ideologia nas histórias de hoje não leu direito as histórias do passado.

É óbvio que houve uma contínua desconstrução e transformação da narrativa e dos arquétipos dos super-heróis. Contudo, o processo não foi total, principalmente se pensarmos em questões de gênero. Nessa linha, os pesquisadores Lucas do Carmo Dalbeto e José Carlos Marques afirmam que as HQs de super-heróis propagaram os seguintes valores de heteronormatização masculina:

De homens espera-se o sustento da família, a virilidade, o predatismo sexual, que eles não controlem seus ímpetos sexuais e que estes ímpetos sejam sempre direcionados para a mulher, cujos discursos se opõem totalmente aos discursos sobre os homens.

              A sexualidade, portanto, está atrelada a discursos a respeito dos corpos biológicos e como estes corpos determinam os gêneros. Gêneros estes que se inscrevem na dicotomia binária masculino/feminino, masculinidade/feminilidade. (p. 321)

Pelo menos uma dessas expectativas está sempre presente nos super-heróis mainstream, desde a era de ouro, passando pela Marvel clássica dos anos 1960 até a desconstrução dos anos 1980. Muita coisa mudou, mas a heteronormatividade continua a norma em muitas histórias, fazendo parte de uma perspectiva ideológica dominante.

Assim, utilizar o argumento genérico de desvirtuamento de um heroísmo clássico universal ou ainda defender uma arte sem ideologias é um grande equívoco e, em alguns casos, uma forma de camuflar o próprio desconforto com novas possibilidades de gênero. Aqui vale um comentário do desenhista David Lopez para o ótimo documentário Le Règne des super-héroïnes (Xavier Fournier e Frédéric Ralière, 2021).

Às vezes, um personagem assume o manto de outro super-herói. Nós vimos isso em Thor. Nós vimos isso em Wolverine. A questão é que ultimamente existe um movimento reacionário contra as mulheres se tornarem poderosas, contra elas terem a sua parcela de poder, uma parcela que elas merecem. E eles ficam com raiva porque agora Wolverine pode ser uma mulher por um tempo. Mas eles não reclamavam quando Thor era um sapo. E Thor foi um sapo por algum tempo, e ninguém se importava com isso! Acho que está tudo bem, desde que a história seja uma boa história. E All-New Wolverine era uma boa história.

Qual Thor te incomoda mais?

Pensando nas reações a personagens não héteros, porque as críticas são fortemente direcionadas à própria  diversidade, e não somente às histórias? Na crítica às histórias medianas com relações hétero, os comentários criticam a heteronormatividade ou as histórias?

Ao comentar o Thor Sapo, Lopes lembrou sobre os multiversos e os vários ciclos das histórias mainstream de super-heróis. Ou seja, quando dizem que desvirtuam Thor, o Superman ou o Lanterna Verde, eles estão comentando qual Thor, Super-Homem ou Lanterna Verde? O questionamento é importante pois não estamos falando de personagens com trajetórias lineares, como acontece, em geral, em mangás ou na literatura. Reivindicar uma origem única em cronologias extensas (e confusas e caóticas) é algo limitador.

Até o momento, não falei sobre a influência mercadológica sobre essas histórias, ou a qualidade das narrativas, pois é interessante pensar o efeito que notícias sobre representatividade LGBTQIA+ podem gerar. No caso que comentamos, a simples notícia do beijo de Jon Kant, o filho de Clark Kent, gerou um ódio generalizado, já que a história do beijo só foi publicada posteriormente.

É possível questionar qualidades e intenções, mas há um clima de preconceito que se forma independente de histórias ou cronologias de super-heróis. Uma leve faísca – como uma imagem – já pode gerar ondas e ondas de ódio. O nosso papel é devastar tudo com uma tempestade de amor. Na entrevista com o pesquisador Lucas do Carmo Dalbeto já foi apresentado um contexto amplo sobre a representação LGBTQIA+ no universo dos super heróis. Nesse texto, irei comentar especificamente o Superman: Son of Kal-El (2021), de Tom Taylor, e o filme The Old Guard (2020, de Gina Prince-Bythewood, analisando um filme e um quadrinho de super-heróis que tenham personagens não héteros.

O QUADRINHO

Son of Kal-El #5, de Tom Taylor e John Timms

O beijo gay de Jon Kent acontece quando ele está descansando na casa do amigo e jovem repórter Jay Nakamura. No momento, seus poderes estão ficando cada vez mais intensos e saindo um pouco do controle, consequência de um ataque misterioso que ele recebeu anteriormente. Depois de horas dormindo, ele acorda com o amigo ao lado, os dois conversam e se beijam na boca. Não há uma abordagem mais profunda sobre o beijo, ainda que a construção da amizade entre eles já tenha começado desde a segunda edição da revista.

Um aspecto interessante: o beijo surge na revista sem nenhuma conotação negativa, é simplesmente um beijo entre dois jovens. Isto, na vida real, é claro que acontece naturalmente, mas, muitas vezes, a ficção insere um clima de tragédia e negatividade no beijo gay. No caso do beijo de Jon Kent, a conotação de escândalo está mais nas reações do que na revista em si. Olhando por esse aspecto, a revista tem um ponto positivo ao retratar de maneira natural algo que é natural: um beijo. O retrato direto do acontecimento – o beijo ocupa uma página inteira – e a abordagem não trágica podem ocasionar reflexos libertários.

Isto não significa que a HQ não tenha conflitos e que os personagens sejam perfeitos. Na verdade, o beijo é mais um elemento de uma série de desconstruções que Tom Taylor está fazendo desde a primeira edição de Son of Kal-El. O conflito de Jon Kent não é somente conseguir ser um super-herói sob a sombra do homem mais poderoso (e famoso) do universo, mas ser um novo tipo de super-herói. Nesse sentido, os diálogos entre ele e seu pai são esclarecedores para entendermos duas perspectivas diferentes de heroísmo: uma clássica focada na solução de sintomas, algo já colocado na primeira edição, e outras que também busca atacar o problema geral que causa esse problema.

Em uma bela cena da segunda edição, pai e filho estão sentados no espaço olhando a terra, e enquanto o pai permanece encantado com a beleza da Terra, o filho também enxerga florestas desaparecendo, oceanos não conseguindo respirar, divisões sociais etc. Clark Kent afirma que talvez ele não tenha feito mais porque ele não é uma pessoa da Terra; ele pode ajudar, mas não liderar, algo possível justamente para Jon, que nasceu na Terra.

Há uma transformação, mas o tom épico característico do Superman permanece intacto. Inclusive, essa construção pode ser criticada devido ao protagonismo grandiloquente colocado em Jon, mas não considero que isso chegue a ser um problema grande na narrativa.

Mesmo assim, a revista não recusa o heroísmo clássico, inclusive porque a relação entre Jon e seu pai é muito amistosa. Além disso, a trajetória do filho também une essas diferentes perspectivas, pois as histórias são intercaladas com cenas de heroísmo clássica, como o resgate de uma menina perdida na floresta ou a elevação de grandes estruturas como uma ponte e um navio, com debates um pouco mais profundos.

Nesse sentido, o vilão da série, Henry Bendix, presidente de Gamorran, é uma escolha eficiente, pois ele representa uma vilania convencional que quer controlar e atacar o super-herói, além de ser uma figura ditatorial manipuladora. Contudo, Tom Taylor também retrata de forma clara que a sua vilania cria uma questão social grave bem realista: a recepção dos refugiados.

E esses diálogos pontuais com problemas sociais são sempre intercalados com referências ao Superman. A questão dos refugiados, por exemplo, é relacionada com a própria origem de Clark Kent, uma espécie de refugiado interplanetário. O beijo de Jon é em um jovem jornalista independente, assim como Clark beijou a jornalista Lois Lane no passado. Ou seja, o passado nunca é recusado, mas articulado com os nossos tempos.

Nesse processo, o beijo de Jon Kent e Jay Nakamura é muito importante, pois a heteronormatividade, como já dito, está completamente inserida no heroísmo clássico. Se a paixão entre um homem e uma mulher não foi um problema anteriormente, então um beijo entre dois rapazes também não deveria ser agora.

O padrão é presente nas estruturas ficcionais clássicas, pois se a narrativa convencional segue os conflitos do protagonista, é comum que a resolução do conflito principal coincida com a permanência de um casal heterosexual. É possível ver isso desde os melodramas vitorianos de D. W. Griffith nos anos 1910 até as histórias clássicas da era de ouro dos super-heróis. A novidade da história de Tom Taylor é que a possível resolução de seu conflito pode coincidir com a permanência do casal Kent e Nakamura. Se incomodar com isto não significa se incomodar com histórias em quadrinhos, pois a estrutura permanece.

É claro que a história não é perfeita. Ela não aprofunda e não engloba diferentes espectros LGBTQIA+, e Jon Kent ainda se encontra em uma posição privilegiada, pois afinal ele é filho do Super-Homem, herdando seus poderes, status e traços físicos. No entanto, ainda assim, há desvios, pois Jon até tem seu corpo atlético definido, mas não é a fortaleza corporal de seu pai, além de ser mais esguio, encurvado, com muito mais estilo do que o pai.

Além disso, o seu lado melancólico, mas não trágico, fornece uma nova possibilidade de super herói não hetero. Ele não é um personagem perfeito e contente. Assim, caso a questão da sua relação com o amigo continue, ele não seria uma fortaleza gay de felicidade, indicando as possibilidades de tristeza e felicidade na vida do personagem.

Jon Kent

Vale destacar que o traço de John Timms salta aos olhos nas quatro edições que ele participou, pois o desenhista conseguiu inserir dramaticidade em cenas cotidianas, como nos abraços entre Jon e Clark ou entre Jon e um homem que está pegando fogo. Nesses momentos, empatia e cuidado transbordam nos desenhos, fornecendo uma possibilidade mais ampla e singela de ação heróica.

Nas imagens mais complexas, a narrativa sequencial de Timms insere fluidez em acontecimentos caóticos, como acontece no resgate de pessoas em um prédio que está desabando na edição 3. Em uma página com requadros tortos, há uma espécie de eficiente montagem paralela entre pai e filho salvando as mais diferentes pessoas e em diferentes cômodos, demonstrando, novamente, como o heroísmo foi transformado mas não rompido.

Dessa forma, as cinco primeiras edições fornecem uma narrativa muito eficiente, uma homenagem ao Superman clássico e a construção de um herói mais contemporâneo. O beijo na quinta edição é a cereja do bolo. Tomara que ele não seja esquecido nas próximas edições. Alguns dirão: mais uma HQ perde qualidade e personalidade com histórias panfletárias e ideológicas. Mas eu li, gostei, me identifiquei e ninguém pode tirar isso de mim e de outras pessoas que também leram, gostaram e se identificaram.

Se uma coragem esperançosa e uma certa inadequação social marcaram a construção clássica do Superman de Clark Kent, esses elementos estão transbordando em cada história de Tom Taylor. É possível criticar esse tipo de construção, considerá-la um pouco ingênua, auto-afirmativa ou épica, mas ela não foi rompida. Assim, é incrível como um simples beijo ficcional trouxe à tona a raiva que muitos sentem na vida real.

O FILME

The old guard também naturaliza as relações homossexuais entre super-heróis. O filme não é do universo Marvel ou DC, mas é baseado em uma HQ, e foca em um grupo de pessoas eternas que viaja pelo mundo ajudando a humanidade em missões secretas e perigosas. A líder é Andy, interpretada por Charlize Theron.

Apesar do premissa, o filme tem um tom mais realista do que os outros filmes de super-heróis, pois os soldados não usam uniformes ou capas, e os problemas que eles enfrentam são realistas. Não há um Thanos aqui. A ação é frenética, mas nunca se torna mágica. Os imortais são, principalmente, bons combatentes, e não seres com poderes extraordinários.

Assim, há aqui os elementos clássicos de um eficiente filme de ação, mas a obra da diretora Gina Prince-Bythewood insere um elemento novo: o casal formado pelos combatentes Joe (Marwan Kenzari) e Nicky (Luca Marinelli), um casal apaixonado e imortal (que imagem poderosa…). Apesar da novidade, o relacionamento é apresentado de forma natural, sem nenhuma conotação de escândalo ou tragédias pessoais. A primeira vez que o espectador recebe essa informação é em uma cena no vagão de um trem, quando a câmera passea pela espaço mostrando os soldados dormindo e, rapidamente, enxergamos dois homens abraçados. A câmera não se demora sobre os dois, somente os registra rapidamente assim como registrou os outros personagens.

A naturalização é paralela com o Son of Kal-El, mas o filme aprofunda muito mais o sentimento e a conexão dos personagens. Entre os seus grupos de amigos, ninguém os questiona ou estranham, eles são simplesmente um casal, e um casal que não tem medo de se beijarem na boca enquanto estão cercados por soldados armados que perseguem os dois.

O beijo apaixonado de Joe e Nicky em The Old Guard

De longe, essa cena é a mais bonita do filme, pois diante do único pequeno riso de escárnio aos dois, um dos soldados se declara de peito aberto e diz na frente de todos que ama seu parceiro sem medidas e razão, que ele é tudo e é mais.

Cativante e extravagante, o casal rouba o filme em muitos momentos, demonstrando que esta presença já poderia existir há muito tempo. Mas tudo tem que começar de alguma forma, e The Old Guard apresentar um casal gay tão romântico demonstra a carga de utopia e coragem que precisamos ter no momento.

No entanto, o filme poderia ir além na construção da personagem de Charlize Theron. O protagonismo dela é cativante e total, pois ela é a estrela das belas cenas de ação e os personagens que a seguem demonstram um profundo respeito. A sua construção não enfatiza elementos que muitos consideram naturalmente femininos, como delicadeza ou cuidado, mas que são construções sociais. No já citado documentário Le Règne des super-héroïnes, muitos criticam essa construção “feminina” em filmes de superheroínas, desde o Supergirl (Jeannot Szwarc, 1982), até os atuais filmes com a Viúva Negra, como comenta a pesquisadora Mélanie Boissonneau:

No início, a Viúva Negra é incrível, e então, com o passar do tempo, algumas pequenas coisas a colocam de volta nos trilhos de uma feminilidade mais admissível. Ela começa a cuidar do bebê do Gavião Arqueiro, ela se interessa em como as pessoas estão. Ela está envolvida com cuidado, em como as pessoas estão se sentindo, enquanto o Homem de Ferro, Thor e o Capitão América resolvem os problemas reais do mundo. […] Em uma cena em que ela se opõe ao Hulk, ao Bruce Banner, ela até se descreve como um monstro porque não pode ter filhos. É totalmente inacreditável. 

A construção de Andy é distinta. Ele se preocupa com os parceiros, mas a sua liderança se impõe mais pelo seu passado – já que ela é a imortal mais antiga – e pela sua eficiência em combate. No plano pessoal, a sua infelicidade é parecida com a dos outros soldados, já que todos não conseguem manter laços profundos com os mortais e também sentem saudades dos imortais que já se foram. No plano geral, o que a incomoda realmente é como as ações do grupo não transformaram o mundo em lugar melhor. É um heroísmo amplo que não repete convenções de gênero. Visualmente, ela é bela e poderosa, mas a câmera nunca a objetifica em enquadramentos constrangedores, como acontece em muitos filmes de super-heroínas, a maioria dirigidos por homens.

No entanto, a tragédia da personagem tem algumas camadas que podem ser debatidas. No passado, a grande parceira de Andy era Quynh (Ngô Thanh Vân). Além de grandes lutadoras, havia um vínculo forte entre as duas, tanto que Charlize Theron sorri pela primeira vez justamente em uma cena de flashback com a amiga.

Mas ela acabam aprisionadas e condenadas à morte, mas nunca são assassinadas devido à imortalidade. O sorriso e cumplicidade entre as duas, depois das várias tentativas de morte, evidenciam um desses contrastes maravilhosos de felicidade na dor e dor na felicidade. No final, separam as duas, pois juntas elas seriam muito poderosas. Quynh é aprisionada em um caixão e Andy nunca mais a localiza.

Uma questão que surge: Quynh e Andy eram parceiras ou também amantes? Se algo for revelado, será no próximo filme, mas a conexão entre as duas é bem mais profunda do que a de Andy com seus outros companheiros. Caso elas sejam mais do que amigas, fica uma pergunta: por que o filme não revelou isso no primeiro filme? No momento, isto ainda pode ser visto como algo arriscado, afinal estamos falando da personagem da estrela Charlize Theron, mas o questionamento já indica a limitação mesmo de filmes potentes, sinal de que muita coisa ainda precisa mudar.

Se o relacionamento da personagem com a sua parceira fosse retratado da mesma maneira que a relação entre os soldados Joe e Nicky, The Old Guard poderia ter uma leitura bem diferente. Além de um bom filme de ação, ele se tornaria uma forte alegoria contra o preconceito, pois a dor ao redor de um amor gay forneceria humanidade para esses imortais. A solidão que eles sentiriam ao se descobrirem imortais poderia facilmente ser lida como uma metáfora para o complicado se descobrir gay ou sair do armário.

Andy e Quynh em The Old Guard

Posteriormente, a camaradagem entre os imortais poderia representar o vínculo afetivo que muitas pessoas LGBTQIA+ encontram somente em grupos distantes. Para alcançar isso, bastaria um beijo no flashback entre Quynh e Andy. A perseguição contra elas, na Idade Média, não seria somente contra os seus poderes, mas contra o seu amor. E aí, o ataque de um mundo raivoso perderia ainda mais presença diante da imortalidade das duas. Os loucos que a atacaram seriam somente corpos de rostos esquecíveis, o filme não seria sobre perseguidores contra um casal, mas sobre um amor que não morre mesmo com raivosos em volta. Precisamos disto deste sentimento hoje em dia.

De certa forma, esse filme existe, mas ele ainda precisa de uma leitura mais empática do espectador para “surgir”. Se a obra fosse mais direta, a metáfora iria simplesmente explodir no rosto de todos os espectadores, que, caso fossem héteros, precisariam aprender a criar emoções e empatias com personagens LGBTQIA+. Algo justo, pois foi o que o público não hétero fez com um cinema que, por décadas, se recusou a apresentar com dignidade outras possibilidades de afeto.

Digo isto pois, no passado, segundo Glyn Davis and Yannis Tzioumakis, houve uma preferência masculina gay pelo melodrama clássico devido a artificialidade e teatralidade do gênero, se criando uma ponte entre a maneira como as mulheres dos melodramas e as pessoas gays se viam diante da necessidade de interpretar na vida social. Isto, é claro, se dá a partir de uma leitura do público gay, já que nos melodramas clássicos, como os que Douglas Sirk fez para a Universal dos anos 1950, casais homossexuais nunca foram protagonistas.

Mas se esse público conseguiu criar essa conexão mesmo em realidades tão distintas, talvez agora seja a hora do público hétero começar a criar algum tipo de conexão com personagens LGBTQIA+. The old guard já é um belo filme nesse processo, pois coloca soldados abertamente gays em um filme de ação e super-heróis. Quem sabe Quynh e Andy formem o novo casal do próximo filme, iniciando um protagonismo que precisa se tornar mais comum.

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