O cinema noir se tornou um marco na história do cinema norte-americano. Com narrativa e estilo fortemente característicos, é bem fácil sentir alguma referência noir, ainda que seja difícil definir especificamente o seu significado. Em O outro lado da noite: Filme Noir (2001), A. C. Gomes de Mattos considera que “que o filme noir é um desvio ou evolução dentro do vasto campo do gênero drama criminal, que teve o seu apogeu durante os anos 40 até meados dos anos 50 e foi uma resposta às condições sociais, históricas e culturais reinantes na América durante a Segunda Guerra Mundial e no imediato pós-guerra.” Estas obras são influenciadas pela a ficção criminal de nomes como Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Caim e Cornell Woolrich e pela estética do expressionismo alemão, apresentando histórias pessimistas que abordam temas como corrupção, morte, loucura e fatalismo. Dito isto, esses principais elementos do noir foram usados à exaustão até os dias de hoje, tanto positiva quanto negativamente. No primeiro número do especial Requadro, iremos comentar sobre duas obras posteriores ao período clássico do cinema noir que realizaram este resgate de forma inspiradora, retrabalhando detalhadamente o gênero, sem subvertê-los.
O quadrinho: Blacksad, de Juan Días Canales e Juanjo Guarnido.
Em 2017, a editora Sesi Sp publicou uma nova edição de Blacksad, escrita por Juan Días Canales e desenhada por Juanjo Guarnido. Até o momento foram lançados cinco quadrinhos que, apesar de se situarem no mesmo universo em volta do personagem-título, podem ser lidos separadamente pois as histórias começam e terminam em uma mesma edição. A proposta da obra é original: narrar as desventuras de um detetive durão nos anos 1950, mas com todos os personagens sendo animais. Esta característica torna mais eficiente a assimilação da personalidade dos personagens, pois não precisamos saber o passado de uma raposa, por exemplo, para desconfiar que ela é trapaceira. Tal estereotipia animal é muito usada em quadrinhos. Como comentou o mestre Will Eisner: “Ao empregar personagens que lembram animais, o narrador gráfico tira proveito de um resíduo da experiência humana ancestral para personificar os atores com rapidez!” No entanto, aqui, a lembrança é materializada completamente, balizando a criação do universo de Blacksad.
Apesar da proposta inovadora, os elementos mais tradicionais da narrativa noir são seguidos meticulosamente: a narração em primeira pessoa, que não só narra mas também comenta o mundo em declínio onde o protagonista vive; o detetive durão, astuto na luta e no raciocínio, com um forte senso de justiça; a femme fatale que engana o personagem antes de mostrar sua verdadeira personalidade no final; a narrativa fragmentada, ainda que linear, que apresenta em pequenas cenas distintas vários personagens enquanto o detetive avança na investigação.
Apesar da proposta inovadora, os elementos mais tradicionais da narrativa noir são seguidos meticulosamente: a narração em primeira pessoa, que não só narra mas também comenta o mundo em declínio onde o protagonista vive; o detetive durão, astuto na luta e no raciocínio, com um forte senso de justiça; a femme fatale que engana o personagem antes de mostrar sua verdadeira personalidade no final; a narrativa fragmentada, ainda que linear, que apresenta em pequenas cenas distintas vários personagens enquanto o detetive avança na investigação.
Na primeira história de John Blacksad, Algum lugar em meio às sombras, o detetive gatuno investiga a morte de Nathalia, uma atriz e antiga paixão. O suspense é construído de maneira quase didática e serve principalmente como uma (ótima) porta de entrada para o mundo de John Blacksad. Com uma trama eficaz e simples, a arte dessa primeira desventura é estimulante. Possivelmente não existe uma página que não impressione o leitor, desde a expressividade dos rostos até os detalhes cenográficos. O ritmo não perde o fôlego em nenhum momento, por meio de várias sequências cinematográficas que organizam os quadros como se fossem planos meticulosamente organizados.
Depois da aula que é Algum lugar em meio às sombras, a segunda história de John Blacksad, Arctic-Nation, apresenta elementos que vão além do tradicional noir. Agora, uma tensão racial também é abordada pelo quadrinho. Contratado por uma professora para investigar o desaparecimento da garotinha negra Kaleigh, John Blacksad acaba se deparando com as ações de uma organização racista, liderada por poderosos animais brancos que praticam violências com indivíduos de outra cor. A própria figura de Blacksad ganha uma nova camada, pois além do detetive durão, cínico, mas com senso de justiça – ao estilo das histórias de Sam Spade –, ele também é um investigador negro, e, portanto, sofre preconceito.
Talvez esse tema pareça muito sério para se tratar em um quadrinho como Blacksad. Mas apesar da proposta inicial aparentemente agradável, é preciso ressaltar que Blacksad é uma obra adulta com questões adultas. Cenas que tratam de sexo e violência (desde brigas em bares e cemitérios até conflitos no meio doméstico) são representadas de forma bem mais explícita do que as obras noir que o quadrinho homenageia. Não que o trabalho aprofunde qualquer uma dessas questões. O mais importante ainda é o suspense e o ritmo, mas isto não o exime de apresentar questões polêmicas. Há uma cena intensa, por exemplo, em que observamos o rosto lacrimejante de Dinah, mãe de Kaleigh, logo após de afirmar: “Você vem da cidade grande e por isso não entende nada. Aqui estamos todos juntos. Nós fodidos e os que fodem. Vivemos em um estado de guerra latente. Uma guerra que já nasce perdida para gente de cor.”
Blacksad é uma obra que busca potencializar as referências cinematográficas, pois o noir homenageado não é necessariamente a literatura, mas principalmente o cinema. No entanto, sobre essa apropriação existe uma questão paradoxal. Após a leitura, ficamos com a sensação de que o quadrinho é uma transposição perfeita de um filme noir. No entanto, isso acontece somente porque a obra exagera a sua cinematografia, o que é algo comum em quadrinhos que tenham essa proposta referencial. Como nota o pesquisador Daniele Barbieri, em seu livro As Linguagens dos quadrinhos: “[…] o quadrinho de planejamento cinematográfico acaba por ser mais cinematográfico que o próprio cinema: como de costume, para que algo possa ser claramente reconhecível, suas características peculiares devem ser postas em evidência.”
Assim, para um quadrinho ser bem sucedido em sua homenagem ao cinema ele não deve simplesmente reproduzir o cinema, mas “reconstruí-lo em seu interior, com seus próprios meios”. Blacksad faz isso com maestria. A variedade de posições que cada quadro toma em uma página é tão grande que dificilmente ocorreria em um filme noir de estúdio dos anos 1940, que muitas vezes seguiam posições fixas que se consolidara com anos de indústria. As distorções ocorriam em momentos de tensão. No caso de Blacksad, para tornar a narrativa interessante, ele não reproduz as posições padrões do cinema clássico, mas varia em diversas angulações. Tudo isso é apresentado de forma fluída e transparente, sem que necessariamente nos preocupemos com essas posições.
Um ótimo exemplo dessa extrapolação é a primeira página de Arctic-Nation (figura abaixo), que é dividida em quatro quadros retangulares e largos. O primeiro começa com um plano detalhe da mão de Blacksad (que não é bem um detalhe, pois a largura do quadro faz com que as informações em volta da mão também fiquem bem à mostra). Os três próximos quadros vão se distanciando, mas sempre na mesma posição, simulando um efeito de zoom out, ou seja, partindo de um detalhe muito próximo, vai se retirando o zoom dele de modo que o espaço em volta do primeiro plano vá se revelando, tudo a partir de uma câmera que não muda de posição. Tal efeito foi usado no cinema noir, no entanto não em uma escala como a da cena em questão, pois nela, a câmera está posicionada em uma altura elevada, quase no topo de um prédio, e no meio de uma área urbana movimentada. No cinema clássico, tal movimento seria bem difícil de realizar. No entanto, no quadrinho ele pode ser feito a partir de uma arte bem elaborada. O reanjo não é só benéfico mas essencial para que o leitor fique com a sensação cinematográfica durante a narrativa.
Como é característico nos quadrinhos europeus, conforme comentado por Rapha Pinheiro, cada página é trabalhada geralmente para apresentar uma cena com significado claro, já que nesse formato a página é grande, possibilitando a inserção de muitos quadros. É como se os acontecimentos retratados em uma ou uma página e meia ocorressem em um mesmo espaço; ou se uma cena ocorrer no mesmo espaço durante várias páginas, pelo menos um elemento novo é inserido nessas passagens, como um personagem por exemplo.
Tal formato é positivo para uma narrativa noir já que ela se move justamente a partir de uma série de entrevistas ou encontros realizados pelo protagonista. A decupagem segue uma tradição clássica: uma nova cena começa como um plano geral apresentando o espaço, e depois vai o analisando por meio de planos mais próximos. Blacksad ainda apresenta inversões interessantes, como Hitchcock fez, começando uma nova cena por meio de planos detalhes e mais localizados, mas que possuem intensidade dramática, somente mudando para o quadro geral no próximo quadro. Vale notar que alguns desses primeiros planos gerais que ambientam uma cena estão em câmera alta, em uma perspectiva de cima. No cinema tradicional, o primeiro plano de uma cena geralmente é um plano conjunto linear, sem angulação para baixo ou para cima. O uso dessa plangência nos quadrinhos se dá por uma facilidade técnica, já que não há uma equipe por trás da construção da cena. Contudo, vale ressaltar que em Blacksad a angulação nunca é gratuita e está em consonância com a proposta da narrativa, pois essa câmera alta geralmente reforça o ambiente sufocante que existe em volta dos personagens em cena.
As cenas se passam em um curto espaço de tempo, mostrando uma conversa ou uma briga. Assim, o tempo entre cada quadro é curto e a leitura é mais rápida. Tal ritmo mais frenético e concreto é fortuito para os quadrinhos, pois em sua linguagem elementos como o desenho e os balões conseguem transmitir uma ideia de passagem de tempo, mas essa passagem geralmente é muito curta – dificultando, por exemplo, a transposição de uma plano-sequência cinematográfico para os quadrinhos.
Assim, ao Blacksad retrabalhar a narrativa noir, o tom frenético de sua matriz casa bem com a linguagem dos quadrinhos. No entanto, como comentado, o efeito cinematográfico da obra não se dá pela imitação de certos efeitos. Enquanto no cinema o espectador assiste a locomoção de um corpo, o quadrinho não precisa necessariamente reproduzir cada frame dessa movimentação. O seu valor cinematográfico está em justamente encontrar os planos perfeitos e isolados que simulem a ideia de que algum personagem se movimenta, sem necessariamente reproduzir cada frame.
A fluidez da narrativa gráfica de Blacksad é consequência da escolha perfeita desses planos. Não há nada gratuito na obra. Cada quadro apresenta uma informação necessária, seja ela objetiva ou subjetiva. E tão importante quanto acompanhar a ação e o movimento dos personagens principais é perceber a rica contextualização da narrativa. Ficamos fascinados com Blacksad, mas também com a cidade em que ele vive. Uma simples mercearia ou uma residência periférica até uma estação de metrô abandonada são retratados com detalhes ricos. No entanto, o impacto não se dá somente pelo realismo paradoxal da obra, mas também pelo tom melancólico que permeia essa representação, em parte devido ao personagens maiores que a vida que ocupam o seu mundo. Eles se agarram as seus vícios, ilusões e esperanças sem nenhuma moderação. Nós temos acesso a pequenos momentos de suas existências trágicas mas que já bastam para impressionar qualquer leitor sensível.
O filme: A dama do Cine Shanghai, de Guilherme de Almeida Prado
“Basta meia hora de espera e pronto, você já tem um homem apaixonado”
“O que eu precisava saber de você eu já soube na primeira vez que te olhei”
As duas frases acima dão um gosto do tipo de diálogo que permeia A Dama do Cine Shangai (1987), o segundo filme do diretor brasileiro Guilherme de Almeida Prado. O filme é um sofisticado exercício de gênero e linguagem cinematográfica. Na trama policial praticamente não há referências ao contexto social do Brasil na época e o resgate realizado não busca a subversão do gênero, como são os casos dos filmes O perigoso adeus (1973), de Robert Altman, ou Vício Inerente (2014), de Paul Thomas Anderson. Não. O objetivo principal é recriar a atmosfera noir clássica, deixando de lado a intensidade policial ou violenta característica de Clint Eastwood ou Scorcese. Pelo contrário, o ritmo de A dama do cine Shanghai é semelhante ao de obras como Curva do Destino (1945), de Edgar G. Ulmer, e Fuga do Passado (1947), de Jacques Touneur, com os acontecimentos narrados por um homem cínico e irônico, sempre com reflexões que carregam uma sabedoria pulp de rua, apresentando uma encenação coreografada que valoriza poeticamente os gestos mais singelos.
Vale notar que essas recriações noir sempre carregam o risco de se tornarem tentativas caricatas ou sucateadas, mesmo quando essa não é a proposta principal. Mas A Dama do Cine Shanghai surpreende e, ao se entregar a um artificialismo noir extremo na encenação e no roteiro, consegue, paradoxalmente, atingir um grau de autenticidade único, transformando Antônio Fagundes e Maitê Proença no Humphrey Bogart e Rita Hayworth que nunca tivemos – não que necessariamente precisássemos deles, mas cinéfilicamente é emocionante ver os dois brasileiros trocando farpas ao melhor estilo Pacto de Sangue (1944), de Billy Wilder.
Se Blacksad apresenta o clássico detetive durão, já A dama do cine Shanghai (1987), destaca outro personagem essencial no mundo noir: a femme fatale. Na trama, o investigador não é um detetive, mas o corretor de imóveis Lucas (Antônio Fagundes), que se apaixona por Suzana (Maitê Proença), em uma sala de cinema. Depois, eles se encontram, quando seu suposto marido Desdino (Paulo Villaça) compra um velho apartamento da corretora de Lucas. No entanto, em uma intricada trama, Lucas se envolve no mundo corrupto de Desdino para tentar salvar Suzanna, sem saber ao certo de que lado ela está.
Em A dama do Cine Shanghai qualquer traço de naturalismo é anulado em prol da homenagem cinéfila. O próprio título do filme é uma referência ao clássico de Orson Welles, A dama de Shanghai (1947), que inclusive aparece passando na televisão de um bar em que Lucas espera Suzana. As manchetes e títulos dos jornais lidos trazem referências a obras de Antonioni e Júlio Bressane. Mas para além dessas referências, os próprios personagens principais não imitam seres humanos normais. Eles falam e se movimentam na vida com uma sofisticação que só existe no mundo do cinema e da literatura noir.
Na verdade, além de personagens, eles são ícones que carregam em seus corpos uma aura cinematográfica clara, inclusive para aqueles que não conhecem os filmes noir. Assim, vale ressaltar a performance do elenco, que nunca cai no exagero. O destaque é Antonio Fagundes, cuja voz valoriza a dicção cristalina, mas sem perder a sua personalidade.
Essa característica pode inclusive se voltar para a organização dos corpos em cena. Tudo parece ensaiado, mas nada é robotizado. Longe disso, os gestos mais corriqueiros ganham uma espécie de lirismo delicado, seja quando Antonio Fagundes passa a mão nos lábios, ou quando Sérgio Mamberti estende um isqueiro. O glamour atinge o ápice, é claro, com o Maitê Proença, cuja performance varia harmoniosamente entre os diferentes estados, transmitindo ora a fragilidade de uma mulher perseguida, ora a imponência de alguém inabalável, até a sedução de uma bela mulher. Todas essas modulações tem o seu tempo e espaço bem divididos em cenas com planos e contraplanos e outras que trabalham planos distantes, valorizando justamente a movimentação dos corpos para fornecer as nuances dos jogos de poder ou sedução que estão em cena.
Um dos elementos mais característicos do cinema noir é a sua fotografia, que valoriza, conforme comentou A.C. Gomes de Mattos, um cenário escuro, produzindo uma constante oposição de áreas de luz e escuridão, com sombras difusas. Nos dois primeiros atos do filme, não há muito o uso desse tipo de iluminação, principalmente porque há poucas cenas noturnas em grande parte do filme. No entanto, outros elementos narrativos e de encenação são tão bem trabalhados que quase não sentimos falta dessa fotografia durante a fruição da obra. Entretanto, o terceiro ato se passa inteiramente em um apartamento noturno, com pouca iluminação, e apresenta um uso espetacular da fotografia noir. Aliás, é magistral o uso de uma lâmpada sobre a cabeça de Fagundes e Proença nos últimos segundos do filme, conjugando perfeitamente o gestual da personagem feminina com sua condição dúbia de femme fatale.
Se comenta muito sobre o caráter urbano do noir e a violência de seus mundos. Mas é interessante notar que essa violência não é somente física, mas também mental e espiritual. Há muitos filmes noir que atingem o seu ápice não em cenas de ação, mas nos momentos de perdição de seus personagens principais. E A dama do Cine Shnaghai é um ótimo exemplo dessa dimensão mais psicológica do noir, pois há várias cenas em que nada acontece, mas que ainda assim não perdem a sua vitalidade. As cenas de apartamento de Antônio Fagundes, onde ele simplesmente fuma cigarros, ouve música ou olha a cidade pela janela, dizem muito sobre o enclausuramento do protagonista.
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