Cineastas que provocam reações polarizadas dificilmente são ignorados. Ame-o ou odeie-o, ele acabará entrando em algum momento em discussão. Nesse panteão de diretores provocativos, o grego Yorgos Lanthimos com sua narrativa desconcertante e bizarra ingressa de maneira absoluta.
O fascínio é ver Lanthimos, que geralmente investe em premissas pouco usuais e absurdas (O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado), agora concebendo seu olhar bastante peculiar a uma história mais convencional. Mesmo sendo mais tradicional do que de costume, A Favorita ainda se trata de um filme de Yorgos Lanthimos.
Se passando no início do século XVIII na Inglaterra, acompanhamos a rainha Anne (Colman) exercendo sua função, sob forte influência de seu carinho e amizade de Lady Sarah Churchill (Weisz). Porém, a relação delas passa a ficar abalada com a chegada da prima de Sarah, Abigail (Stone), que, inicialmente serva, passa a disputar pelo favoritismo da rainha com Sarah.
Apesar de ser roteirizado pela dupla Deborah Davis e Tony McNamara, há muitas semelhanças com os roteiros escritos por Lanthimos. Seja pelos diálogos e atitudes mais estranhas dos personagens durante a premissa, mas também por um humor negro chocante, que aqui é mais escrachado do que em suas outras obras.
Mas o que faz lembrar mesmo do cineasta grego ao bater o olho nesse filme é sua direção. Se tratando claramente de um admirador de Stanley Kubrick, ao utilizar os costumeiros pontos de fuga que Kubrick usava em seus filmes, o longa acaba remetendo bastante a Barry Lyndon.
Outro elemento habitual do diretor é o uso da lente olho de peixe. Aqui, mais uma vez é com o objetivo de causar um estranhamento onde não fica exatamente claro o que há de errado, mas algo não está em ordem naquele universo.
No sentido de construir essa cosmetologia do filme, Lanthimos é absolutamente assertivo em tecer personagens imorais e inescrupulosos em um universo igualmente repressor e desconcertante. O roteiro, ao fragmentar a história em capítulos cujos títulos são disponibilizados na tela de forma não padronizada, impulsiona uma atmosfera muito própria e que casa perfeitamente com a direção do cineasta grego.
Auxiliando todos esses aspectos, a obra não seria fantástica se não fosse pelo trio principal que permeia a história. A começar pela absurda rainha composta com primor por Olivia Colman. Sempre apresentando um comportamento extremamente infantil, sua rainha Anne nada mais é do que uma criança mimada que por algum acaso tem uma coroa. Não sabendo se uma guerra começou ou terminou, sua atitude diante de uma dificuldade é literalmente sentar no chão e chorar copiosamente. Cobiçosa e carente, Colman é incrível ao dosar perfeitamente a infantilidade com crueldade que a personagem tem em algumas decisões.
Decisões em boa parte tomadas por Lady Sarah, vivida também por uma maravilhosa Rachel Weisz. Construindo uma personagem diametralmente oposta a rainha, já que se trata de uma figura inteligente e que sabe administrar os poderes políticos do reino. Abusando da ingenuidade total da rainha, a Sarah de Weisz é alguém rígida e claramente muito difícil de ser contrariada e derrotada, vide as reunião que dá voz a várias pessoas.
Portanto, para ser crível que uma personagem como essa pode ser derrubada, é bastante essencial a trajetória traçada pela personagem de Emma Stone. Desenvolvendo gradativamente uma Abigail alheia aquele universo até o momento em que compreende como jogar o jogo e passa a utilizar da sua inteligência para influenciar todos ao seu redor. A transformação de pessoa dócil até alguém tirânica é muito bem estampada por Stone.
A narrativa se torna mais acirrada e inquietante pela trilha sonora igualmente atípica, que vale de sons e notas repetidas para realçar a aflição daquele mundo. Com uma fotografia mais lavada e tons pouco saturados que beneficia uma hostilidade no design de produção recheado de objetos e aposentos monumentais que revelam a ostentação vazia da monarquia.
Todos os componentes auxiliam a formar uma unidade muito impressionante ao filme, que mesmo com uma premissa aparentemente simples, é bastante rica e recheada de nuances. Há momentos icônicos que permaneceram comigo por muito tempo, como o banho de lama das três personagens ou a interação da rainha com seus coelhos. Momentos de terror puro como a primeira vez que Sarah e Abigail vão atirar em pássaros ou quando certa personagem é arrastada inconsciente por um cavalo são marcantes pela força das imagens e sons ali construídos.
Em um ambiente onde falar “se eu fosse homem a violentava” é tido como um elogio, a visão deslocada e excêntrica de Yorgos Lanthimos se encaixa com perfeição nesse angustiante universo. A Favorita nos fascina pela estranheza e riqueza do roteiro, da composição técnica e pelo fenomenal elenco.
*Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.