A Guerra do Vietnã marcou a história dos Estados Unidos de forma bastante amarga. Principalmente, por que eles perderam um conflito que acreditavam que seria vencido facilmente. A cultura tratou de criticar a guerra desde quando ela ainda estava acontecendo e até os dias de hoje, quando se cria algo a respeito, esse gosto amargo ainda está presente. No cinema a obra considerada mais relevante para ilustrar a guerra é Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. Para além do Vietnã, a produção é considerada por muitos o melhor filme de guerra de todos os tempos. Agora, quando o diretor e ativista negro Spike Lee, conta sua versão da história em Destacamento Blood, lançado diretamente no Netflix, ele usa o clássico para falar do evento a sua própria maneira.

O novo filme de Spike, conta sobre um grupo de veteranos do Vietnã que retornam ao país com o objetivo de resgatar os restos mortais de um amigo de equipe e um baú cheio de ouro enterrado por eles durante o conflito. Para além de um filme de caça ao tesouro, Destacamento Blood é, em primeiro nível, sobre feridas de guerra. Sobre as consequências que um conflito armado pode trazer à vida de uma pessoa e serão carregadas para sempre. Feridas não apenas físicas, mas também emocionais. O “ingrediente Spike Lee” da história, é que tudo se relaciona com o fato de todos os protagonistas serem negros e suas vidas estarem entrelaçadas com acontecimentos da história americana relacionados ao racismo e a luta por direitos iguais.

Além de nomes da política como Martin Luther King Jr. e Malcolm X, Lee ainda utiliza esportistas negros como o pugilista Mohamed Ali e outros nomes da cultura pop. O principal deles é o cantor Marvin Gaye que, além de servir de trilha sonora, ainda tem as letras de suas músicas sendo citadas em discursos ditos pelos personagens. A maioria deles vem do disco What’s Going On (1971) que Marvin compôs durante o conflito. “’Em 1969 ou 1970, comecei a reavaliar todo o conceito do que eu queria que a minha música tivesse como mensagem’, afirmou Marvin Gaye. ‘Fui muito afetado pelas cartas que meu irmão enviava do Vietnã, e também pela situação social da vizinhança. Percebi que tinha de deixar as fantasias para trás se quisesse compor músicas que tocariam a alma das pessoas. Queria que elas olhassem para o que estava acontecendo no mundo’. A obra-prima resultante do despertar de Gaye revolucionou a música negra. Dos grooves ricos e cheios de cordas à noção da infinidade de possibilidades, What’s Goning On é o Sgt. Pepper’s… da soul music.” Trecho retirado da edição “Os 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos”, da revista Rolling Stone em que o disco ocupa o sexto lugar.

O que a princípio parecia ser apenas um filme que faz referencias à Apocalypse Now, com cenas de helicópteros voando contra o sol ou a trilha de a Cavalgada das Valquirias, Spike Lee utiliza isso apenas como mais um elemento. O foco é mostrar os reflexos do conflito na sociedade negra e quais são os desafios atuais desse mesmo grupo.

Além de todas essas personalidades que existiram no mundo real, no universo do Destacamento Blood, Spike cria um mito próprio (aliás, mito é uma palavra bem complicada de ser utilizada atualmente no Brasil, mas é a que melhor se encaixa aqui): Stormin’ Norman, interpretado por Chadwick Boseman, que provavelmente você conhece por Pantera Negra (2018). Ele é o amigo por qual o grupo volta ao país para buscar os restos mortais. Mais do que um amigo, ele era o lado mais idealista e racional do grupo. Era justamente Norman quem usava as palavras de importantes nomes do movimento negro para fazer seus amigos seguirem firmes nos dias mais difíceis da Guerra do Vietnã.

É uma jogada interessante usar justamente um ator que interpretou um herói da representatividade negra no universo da Marvel para interpretar justamente essa figura mítica no filme. É algo bem parecido no caso do ator Jasper Pääkkönen, que no filme anterior de Spike, Infiltrado na Klan (2018) ele interpretou, e muito bem por sinal, um membro da Ku Klux Klan. Quando ele aparece em Destacamento Blood já esperamos que algo pode dar muito errado

Um ponto interessante a se destacar aqui é que, para retratar momentos do passado, na Guerra do Vietnã, Spike Lee, ao invés de usar recursos visuais como foi feito, por exemplo, em O Irlandês (2019), para rejuvenescer atores mais velhos ou utilizar atores mais jovens, como é de costume, são os próprios atores do presente que os interpretam no passado.  Apenas Norman está jovem, pois foi exatamente como ele estava quando morreu. Bom, tem fortes chances de isso ser apenas por falta de grana, por que um processo de rejuvenescimento digital exige mais investimento. Ou pode ser também uma opção, bem criativa por sinal, do próprio diretor, de abordar a história desse jeito. Além disso, Spike usa o formato da tela de cinema como ferramenta. Quando estamos no presente, a tela fica no formato que estamos acostumados hoje, em 16:9. Quando vamos ao passado a tela “diminui” e fica no formato 4:3, que é aquele quadrado de filmes antigos.

Pra além desses momentos e figuras históricas, o filme ainda mostra que essas questões ainda assombram os dias atuais. A personalidade utilizada por Spike para personificar esse sentimento é justamente o presidente dos Estados Unidos Donald Trump. As imagens de registro do passado recente são justamente as dos seus discursos durante a campanha eleitoral de 2016. Além da presença do famoso boné vermelho escrito Make America Great Again (em português: Torne a América Grande Novamente), que surge em momentos cruciais para a trama e na cabeça de personagens que justamente não deveriam usá-lo. Porém, esse item acrescenta veracidade com o que ocorre aqui do lado de fora da tela com minorias se identificando com ideologias extremistas e que, na verdade, querem que elas desapareçam.

Tendo então como pano de fundo a Guerra do Vietnã e a mistura de todos esses elementos, Destacamento Blood mostra que os Estados Unidos têm graves problemas com relação ao racismo até hoje. O que infelizmente não é exclusividade só deles. Mostra ainda, através principalmente do discurso de Trump, que as coisas ainda estão muito perto de piorar. Acredito que Spike Lee não poderia imaginar, mas é interessante ver esse filme ser lançado justamente no período em que temos manifestações contra o racismo ao redor do mundo. Iniciados após a morte de George Floyd de forma covarde por um policial. Muitos podem dizer que ele “adivinhou”, mas na verdade desde sempre, ele estava atento a isso. E é justamente essa a maior característica dos seus filmes. E, no caso desse último lançamento, utilizou basicamente fatos para comprovar que a culpa vem, obviamente, maior parte dos brancos, mas infelizmente, não somente deles. Mesmo depois de tantos acontecimentos na história da humanidade, falta ainda uma consciência real da sociedade dos problemas que persistem em existir e ela insiste em negar.

Destacamento Blood

 

Ano: 2020
Direção: Spike Lee
Roteiro: Danny Bilson, Paul De Meo, Kevin Willmott, Spike Lee
Elenco principal: Delroy Lindo, Jonathan Majors, Clarke Peters, Norm Lewis, Isiah Whitlock Jr.
Gênero: ​Aventura, Drama, Guerra
Nacionalidade: Estados Unidos

Avaliação Geral: