Por Guilherme Franco
“God make me a Woman” (“Deus me fez uma mulher”, em tradução livre.)
O que faz um super-herói? Você já fechou os olhos e pensou em por que músculos, força e violência chamam tanto a atenção? O porquê de estarmos tão “desenvolvidos” e ainda assim não nos desvincularmos de nossos instintos neandertais?
A Garota Dinamarquesa, que estreou recentemente no Brasil e tem Eddie Redmayne indicado ao Oscar por Melhor Ator Principal, conta a história de Lili Elbe, que foi uma verdadeira mulher-maravilha da década de 1920. Foi a primeira transexual que passou por uma cirurgia de redefinição sexual, que se tem registro (no caso de Lili foram quatro sessões). Com algumas mudanças e privilegiando a luta de nossa protagonista, David Ebershoff escreveu o livro “Man Into Woman” baseado nos diários de Lili. Com mais algumas alterações, foi feito o roteiro por Lucinda Coxon, que contém várias entrelinhas nas quais pode-se sobressair muitos pontos de discussão.
Seguindo a linha de filmes que ajudam a desvendar o misterioso e, considerado por muitos, estranho mundo LGBTT, o diretor segue uma linha mais comercial e com uma narrativa mais rápida para agradar ao grande público, como Priscila, a Rainha do Deserto, mas insere alguns pontos poéticos, que poderiam ser bem mais explorados e, assim, criar uma obra mais sensível e de arte, como Carol. Como por exemplo, a sensibilidade e o olhar diante o espelho da protagonista, o ritmo da narrativa e a montagem dos diálogos, ou a inserção da trilha e imprimir uma direção de arte mais ousada. O grande plot da história e o considerado impulsionador para a transição da protagonista é um “homem se submetendo ao olhar de uma mulher”, Einer (Lili) sendo pintado e desenhado por sua esposa. O que é algo muito interessante de se analisar, visto que é colocado sempre o contrário: a idealização da mulher, sempre o artista masculino colocado em destaque com sua mente intelectual e artística.
A cena em que o protagonista se olha diante o espelho com roupas femininas (vista também em Billy Eliot), pode causar estranhamento e escárnio de alguns. Seria pertinente compará-la a um acontecimento recente, o carnaval. Período em que homens têm a liberdade de se vestir como mulher e sair por aí, ora degradando imagens de trans, drags e da própria mulher, ora exaltando esse símbolo. Momento onde há uma possível libertação dessa dama reprimida pela sociedade conservadora.
A questão atual não é problematizar tudo e, sim, relativizar piadinhas racistas, machistas e lgbttfóbicas. Por que existem pessoas sofrendo e a violência direcionada a elas não é nenhuma piadinha leve, visto que a expectativa de vida de uma mulher trans no Brasil seja de 30 anos de idade, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), contra 74,6 anos de uma pessoa considerada “normal” pela sociedade. O não entendimento do mundo lgbtt sempre esteve presente e vemos no longa como ele era incompreendido e taxado como esquizofrênico, insano, patológico.
A maior discussão dos concorrentes ao Oscar está entre Leonardo DiCaprio e Eddie Redmayne, que no ano passado levou a estatueta por sua atuação no filme A Teoria de Tudo, interpretando o físico Stephen Hawking. Dirigido por Tom Hooper (O Discurso do Rei, Os Miseráveis), Eddie traz uma personagem que reflete todo o sofrimento e o estado de êxtase de uma pessoa que está passando por uma trasformação como a de Lili. Muitos internautas em grupos no Facebook sobre cinema criticaram Eddie Redmayne por conta de o ator parecer travado e robotizado, mas sinto que estes ignoraram todo o momento de dúvida, incertezas e de um desconhecimento do próprio eu que muitos lgbtt passam. Não existe perfeição, mas não houve uma falha na atuação do ator, talvez na sensibilidade de alguns espectadores.
A trilha sonora é feita pelo poderoso Alexandre Desplat, que fez a música de obras como O Grande Hotel Budapeste, O Discurso do Rei, Godzilla e Harry Potter. Em partes dramáticas os instrumentos continham não somente o tom de drama, mas também de suspense, lembrando bastante uma trilha de Harry Potter, mas romantizada.
Alicia Vikander, concorrendo a Melhor Atriz Coadjuvante, quase divide o protagonismo do filme com Redmayne, sua personagem se torna praticamente uma melhor amiga de Lili, e esse é outro ponto interessante para se observar: todo o processo de aceitação e tentativas de compreensão do que estava acontecendo com seu marido até ele se tornar Lili. O filme ainda concorre na categoria de Figurino e Design de Produção, as vestimentas e cenários de A Garota Dinamarquesa são bem elaborados e realizados, mas ainda existe a possibilidade de arriscar mais, de usar essa oportunidade para inserir algo mais autoral e único no filme, tornando-o assim uma obra mais singular. O final do filme é meio que solto ao ar e mal realizado, alguns pontos não ficam claros, como a profissão escolhida pela protagonista para continuar sua vida, e a continuidade do roteiro até se finalizar, de repente tudo acontece bem rapidamente.
Em meio a um contexto onde felizmente discutimos cada vez mais abertamente questões do cotidiano ao nosso redor, A Garota Dinamarquesa aparece para dar um impulso nos debates (como a discussão de não terem escolhido um ator trans para interpretar Lili, entre outras) e atrair mais atenção a esse tema tão importante e tão mal resignado e veiculado pela mídia. Mas além disso, para revelar ao mundo uma de muitos desses heróis reprimidos, que são escondidos e calados todos os dias.
A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl)
Ano: 2015
Direção: Tom Hooper
Duração: 119 min.
Gênero: Drama
Nacionalidade: EUA, Reino Unido, Alemanha
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