Um dos erros linguístico do português mais comuns cometidos pelas pessoas se trata da escrita de “gente” e “agente”, dois substantivos onde o primeiro se trata de um conjunto de pessoas, enquanto o outro se refere a alguém agenciado, um funcionário ou o clássico exemplo usado por professores, “agente secreto”.
É um erro cometido por conta de uma frase conter “a gente”, onde se refere a pessoa que escreve e o grupo de pessoas com as quais ela fala, que na situação citada, estão juntas. Isso compactua muito não apenas com a opção de Aly Muritiba de intitular o filme de forma separada, mesmo claramente se tratando sobre agentes (penitenciários, no caso), mas com sua relação com os agentes aqui retratados, já que o diretor trabalhou por certa de 7 anos como agente penitenciário, revelando, assim, um olhar mais próximo e que reflete mais companheirismo, tornando o título muito mais apropriado.
Iniciando já em uma sala onde se encontra reunida a Equipe Alfa para discutirem suas ações, Muritiba já dita o tom observacional que o documentário assumirá durante todo seu tempo, sendo apenas a “mosca na parede” e nunca interferindo naquele ambiente com perguntas ou narrações, focando apenas no cotidiano dos agentes penitenciários, especialmente no agente Jefferson, cujos momentos de sua vida fora do trabalho, com a família e na igreja, da qual é pastor, também são capturados.
Dinâmico por essa abordagem e em retratar a precariedade da prisão, Muritiba evita assumir visões binárias e pintar heróis e vilões sobre os problemas carcerários do Brasil e, assim, se concentra em mirar no dia a dia dos agentes, seus modos de trabalho e as dificuldades que aparecem por conta do sistema.
Por exemplo, Muritiba nos posiciona ao lado do agente quando um preso se queixa de estar com o dor no dente e nos ouvidos e querendo atendimento médico, enquanto o agente explica que naquele momento só duas enfermeiras estavam presentes e que ele precisaria passar por uma série de pessoas para que o preso fosse finalmente atendido.
Daí o documentário se desdobra de maneira imersiva nas questões burocráticas e complicadoras na vida prisional, ao mostrar a rotina de revistar os visitantes dos prisioneiros ou até mesmo um atendimento psicológico oferecido à eles e que ocorre em uma minúscula cabine. São feitas perguntas que não parecem considerar com sinceridade o bem-estar daquelas pessoas, trazendo outro interessante elemento que permeia o documentário, que é a quantificação e desumanização daquelas figuras, ao trazê-los como números e estáticas (o diretor constantemente posiciona a câmera numa sala com quadros onde se encontram os números de presos naquele dia) e não como indivíduos com particularidades.
Portanto, é fascinante como o realizador apenas sugere quais são os reais problemas da questão carcerária do Brasil, sem necessariamente verbalizar alguma opinião, apenas permanecendo de canto e nos mostrando aquela realidade triste e precária. E quando há algum tom julgador, sempre parte dos documentados, e não do documentarista, como por exemplo em um momento onde um agente, ao lado de um preso, o questiona se valeu a pena tirar a vida de alguém e acabar lá.
Além do mais, a questão da culpa e redenção com religiosidade se mostram presentes aqui, assim como no seu primeiro longa de ficção, o ótimo Para Minha Amada Morta, ao tornar o agente Jefferson como o protagonista aqui e este se tratar de um pastor, já que a culpa é um tema bastante presente na Bíblia e explicitado no documentário quando o pastor cita para um rapaz a Parábola do Filho Pródigo. Dessa maneira, é sugerido (não confirmado) as motivações de Jefferson para ser um agente penitenciário, o qual almeja que os pecadores (os presos, no caso), possam se arrepender e serem perdoados.
Hábil em conceber seus enquadramentos para ressaltar o ambiente opressivo e sujo, como quando trazr os agentes percorrendo por estreitos e altos corredores ou em um espaço fechado com janelas pequenas e fixadas no alto, com pouquíssima luz. Também na melancólica e simplória sala onde os agentes se reúnem para discutir seus afazeres, Muritiba foca em desenvolver as relações dos agentes com o sistema ou com os presos e nunca sem eles, dando uma perspectiva original para o filme, cujo tema já foi bastante retratado tanto na ficção quanto em documentários.
Assim, outro elemento presente e auxiliado pela direção segura é como se trata de um universo quase onipresente o carcerário, já que praticamente todas as conversas entre os agentes giram em torno do ambiente de trabalho, e mesmo num momento de descontração, quando estão comendo pizza, as falas são poucas e logo o estado de alerta e atenção ao trabalho volta com uma chamada de walkie-talkie. Até mesmo numa aula de matemática dada para os presos a realidade deles é lembrada, quando o professor usa como exemplo um problema de matemática o “número de presos”, novamente voltando a temática da quantificação.
Tanto que as sequências na prisão e as concentradas em Jefferson são absolutamente distintas, já que o agente Jefferson e o pastor Jefferson parecem se tratar de duas pessoas muito diferentes, enquanto o primeiro é compenetrado em seu trabalho e firme em lidar com conflitos com prisioneiros, o pastor se permite uma postura mais leve, mas ainda assim introvertida, e faz com que torne o protagonista em alguém bem mais complexo do que aparenta.
É interessante reparar que mesmo não tendo uma intimidade tão grande e não conversarem sobre suas vidas privadas, os agentes penitenciários parecem constantemente unidos e prestativos uns aos outros, sejam nas reuniões ou em seus trabalhos, eles são absolutamente respeitosos entre si, onde até mesmo quando ocorre uma greve dos agentes, os que aderiram a ela debatem de forma racional e pacífica as razões pelas quais eles fizeram isso a alguém que não aderiu.
Segmentado por letreiros que trazem o código internacional Q (usado principalmente pelas Forças Armadas) e revelando também a vulnerabilidade deles (os agentes não portam armas) e o profissionalismo (quando em um pequeno momento eles analisam algumas regras novas), Muritiba mostra um grande respeito pela profissão, obviamente, já que a exerceu, mas em contrapartida tece com maturidade uma obra que se distancia de conclusões fáceis e permite expor apenas com a observação todos os problemas enfrentados pelos presos e funcionários das prisões brasileiras.