O roteirista Robert Mckee possui uma frase assertiva para a construção de protagonistas: num filme, o personagem principal não precisa ser simpático, mas sim empático. Na prática isso quer dizer que o público contemporâneo não está mais tão interessado em ver na tela aqueles heróis virtuosos, ícones de perfeição, mas sim pessoas normais, com falhas e erros. Protagonistas simpáticos acabam se tornando “alguém a se admirar”, protagonistas empáticos deixam no público a sensação de que “ele é alguém como eu”. O grande problema é quando o personagem central não é uma coisa nem outra, o que é o caso de A Suspeita.
Concorrendo ao Kikito no 49º Festival de Gramado, o longa dirigido por Pedro Peregrino é um drama policial focado em Lúcia (Glória Pires), uma investigadora que, aos 55 anos, descobre que tem Alzheimer. Após dedicar a vida à sua profissão, Lúcia precisa lidar com o agravamento da doença, que a deixa em extrema fragilidade enquanto investiga o assassinato de um famoso escritor, que estava trabalhando nas memórias de um dos chefes do tráfico no Rio de Janeiro.
Com uma construção lenta, aos poucos A Suspeita vai nos apresentando à história e, de quebra, à Lúcia. A personagem exibe um comportamento introspectivo e desconfiado, bem adequado para uma policial que precisa parecer neutra e muitas vezes passar despercebida. Quando descobrimos sua questão de saúde, os hábitos solitários e obsessivos de Lúcia fazem mais sentido por revelarem que sua reserva serve também para adiar o momento em que terá que revelar que está perdendo a memória.
Contudo, o distanciamento de Lúcia afeta também o público, que não consegue se apegar à personagem nem se importar com seus problemas. Glória Pires empresta seu talento à investigadora, mas existe pouco espaço de manobra para que ela consiga exibir suas escolhas artísticas. A impressão é que a Lúcia é reservada demais para ser vivida diante das telas. Essa construção da protagonista influencia na conexão (inexistente) do público com os demais personagens, que parecem planificados e frágeis.
O que é uma pena, pois A Suspeita possui uma premissa bastante interessante. Uma policial que começa perder a memória durante uma investigação tem tudo para render uma aventura cinematográfica interessante. Triste é que não rende. Os elementos apresentados falham em gerar suspense, em partes pelas questões envolvendo a protagonista, mas também pela facilidade com que Lúcia conduz uma investigação secreta. A policial consegue descobrir o paradeiro de traficantes e investigar colegas de corporação com a mesma facilidade com que cola as já conhecidas fotos de suspeitos na parede de casa. Soa inverossímil.
Como não existem obstáculos que Lúcia não consiga superar, o público perde ainda mais o interesse em seu objetivo, por ter a certeza que ela vai alcança-lo. Nesse balaio de esforços frustrados, estão também questões pontuadas mas nunca aprofundadas, como a ideia de que “os fins justificam os meios”, e o romance aleatório entre Lúcia e seu superior.
Quem ganha pontos nesse contexto é a direção de fotografia que, capitaneada por Fabrício Tadeu, trabalha de maneira primorosa com a narrativa. Repleta de belos enquadramentos, a fotografia se apresenta robusta e bem pensada, com planos precisos, movimentos de câmera certeiros, sincronizados com os movimentos dos atores, e longos planos sequência, que além de tecnicamente bem executados, reforçam as relações entre os personagens. Nos lapsos de memória sofridos por Lúcia, a profundidade de campo fica cada vez menos nítida, exacerbando o sentimento de confusão da personagem perdida no tempo, sentimento esse reforçado pela montagem de poucos cortes e grandes saltos temporais.
Em retrospecto, A Suspeita tem todos os elementos que compõem um drama policial de qualidade. A premissa é instigante, as equipes técnicas trabalham em prol da narrativa, as convenções de gênero estão presentes… Contudo, falta potência nessa mistura, que tem um sabor tão sutil que não causa impacto. Citando novamente Mckee, o roteirista reforça que um filme não deve mandar seu público de volta pra casa pensando em outras possibilidades para o roteiro. Mas é o que acontece aqui. Se Lúcia tivesse sido um pouco mais aberta, nós embarcaríamos em sua jornada e torceríamos por ela. Infelizmente, essa missão ficará perdida no tempo… e na memória.
Essa crítica faz parte da cobertura do Cinemascope da 49ª Edição do Festival de Cinema de Gramado.
A Suspeita
Ano: 2021
Direção: Pedro Peregrino
Roteiro: Thiago Dottori
Elenco principal: Glória Pires, Galba Gogóia, Gustavo Machado
Gênero: Drama, Policial
Nacionalidade: Brasil