As ideias absurdas são sempre mais sedutoras e, quando bem executadas, possuem uma certa beleza. Esse é uma das maneiras de descrever Aos Pedaços, novo filme de Ruy Guerra. Partindo de uma premissa curiosa, o longa possui um desenvolvimento que beira o teatral. Eurico Cruz (Emilio de Mello) possui duas esposas iguais e com o mesmo nome: uma é Ana (Christiana Ubach) e a outra é Anna (Simone Spoladore). Uma mora numa casa na praia e a outra no deserto. Ao receber um bilhete prenunciando sua morte, Eurico passa a conferenciar-se com Eleno (Julio Adrião), enquanto se divide cada vez mais entre as mulheres que representam um perigo duplo.

A história original de Ruy Guerra se baseia em dois pilares. O primeiro é a clássica relação entre amor e morte (Eros e Tânatos). Eurico espera que seu fim seja decretado por uma das esposas a quem tanto ama. Essa desconfiança cria no protagonista neuroses e incertezas alimentadas por Eleno, um tipo de alter ego fantasiado de culpa cristã. O segundo pilar é a lógica do duplo (doppelgänger). Ana e Anna são versões óbvias de uma mesma mulher, representando aqui os dois lados de uma moeda, opostas ainda que semelhantes.

Partindo dessa constante dualidade, o protagonista embarca num labirinto de neuroses onde fantasia e realidade se misturam. Essa sensação é intensificada por uma ambientação indefinida. Não sabemos onde nem quando a história se passa, muito menos em qual período de tempo.

O tom introspectivo da trama é intensificado pelo texto, que contém poucos diálogos e muitos monólogos repletos de falas que podem servir como pontapé para reflexões mais profundas. Esse fato permite que os atores façam boas escolhas, entregando performances dedicadas e, por vezes, hipnotizantes. Aos Pedaços diferencia-se também por usar a narração, realizada por Arnaldo Antunes,  de maneira inteligente, tornando-a parte da história e não apenas uma muleta para o roteiro.

Retornando às suas origens, Ruy Guerra opta por uma fotografia pb com alto contraste entre luz e sombras, o que intensifica a carga dramática. A iluminação, feita de maneira assertiva, demarca as linhas da arquitetura moderna dos ambientes e cria silhuetas que colaboram com o tom de desconfiança do filme. Outra de suas características presentes é a câmera inquieta, que ora se aproxima, ora se afasta dos personagens, em movimentos constantes que dialogam com o público e a narrativa.

A certa altura uma das Anas revela que considera a paixão uma ruína, enquanto a outra escreve em um diário que está apaixonada por uma ausência que vive dentro de si. Repleto de contradições, Aos Pedaços constrói com liberdade imaginativa uma história de dúvidas, anseios e reflexões. É mais um belo e absurdo exemplo da atual fase da carreira de Ruy Guerra.

 

*Essa crítica faz parte da cobertura Cinemascope do Festival de Gramado 2020.

Aos Pedaços

 

Ano: 2020
Direção: Ruy Guerra
Roteiro: Ruy Guerra e Luciana Mazzotti
Elenco principal: Emilio de Mello, Simone Spoladore, Christiana Ubach, Julio Adrião
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 3,5