Linchamentos virtuais se tornaram um fenômeno tanto sintomático quanto tóxico da sociedade contemporânea que dispõe da fluência e facilidade de alcance das redes sociais. Basta escrever um texto e manda-lo para o máximo de pessoas, sendo algo verdadeiro ou não, o que é dito se espalha pelas redes sociais como fogo no palheiro e a veracidade do que consta naquilo acaba pouco importando em um determinado momento.
É um mote bastante atual e que ancora a premissa de Aos Teus Olhos, dirigido por Carolina Jabor. Apesar de não imprimir tanto uma ambiguidade ou dúvida sobre a culpa ou inocência do protagonista (embora o filme acredite ter), ao menos ele articula muito bem uma crescente tensão que sobressai conforme aquela história vai avançando e reflete bem as consequências do tal linchamento virtual.
O roteiro escrito por Lucas Paraizo nos apresenta a Rubens (Oliveira), um instrutor de natação de um clube. Bastante dedicado e gentil com as crianças, sua conduta começa a ser questionada quando um de seus alunos pequenos, Alex (Mello), afirma que o professor o beijou na boca para sua mãe (Rabello) e seu pai (Ricca). Obviamente preocupados, não apenas alertam a diretora do Clube, Ana (Galli), como também os pais passam a compartilhar a acusação para os pais dos outros alunos, tornando todo o caso público e aos poucos virando uma verdadeira punição antecipada para Rubens.
Fazendo uma associação interessante ao iniciar a projeção já dentro da piscina, onde as vozes e figuras se distorcem e mostram a falta de clareza de toda a situação, Jabor também faz um elegante plano-sequência que acompanha Rubens e já mostra em poucos minutos a simpatia e gentileza que o sujeito demonstra para seus alunos e outras pessoas, sendo palpável que se trata de uma pessoa querida naquele ambiente, mas gerando desconforto também por conta de tocar no ombro de todos os seus alunos.
Porém, desenvolvendo a figura privada de Rubens, revela que ele se trata de uma pessoa nem um pouco admirável e facilmente repulsiva pela forma que fala de certas pessoas ou mesmo de desobedecer a regras como a de não fumar no vestiário. E por mais fascinante seja a desconstrução do protagonista, não deixa de pesar para o espectador decidir se é inocente ou culpado da situação, o que tira boa parte da ambiguidade que o filme acha ter e fazendo concluir com certa facilidade o que aconteceu ali.
Mesmo assim, Carolina Jabor é competente em fazer com que o espectador queira acompanhar Rubens e que, apesar de seu mau-caratismo, a conclusão sumária que as pessoas tomam da situação não deixa de ser injusta e ganha contornos de crueldade, mesmo acontecendo com alguém tão odioso.
O que também ameniza o impulso de querer condenar Rubens é o belo trabalho do talentoso Daniel de Oliveira, que consegue despontar simpatia e afeição em vários momentos, mas também sendo capaz de soltar coisas absolutamente reprováveis e execráveis e que parecem serem ditas mais por conta da falta de consciência do sujeito das consequências que essas falas podem ter do que efetivamente aquilo se tornar uma ação que ele praticaria.
Daniel de Oliveira consegue até mesmo dar naturalidade a um tique que faz com seu anel no dedo e que cai no chão, o que é uma referência sexual óbvia e batida, mas que transmite a insegurança e nervosismo de Rubens. E embora uma simbologia manjada, não deixa de ser correta os constantes mergulhos de Rubens na piscina ou seus banhos no chuveiro do vestiário, como uma necessidade do personagem de se “limpar”.
Trazendo nuances interessantes para os personagens secundários, como o dilema compreensível de Ana de acreditar ou não na denúncia e atrelado a isso a reputação do seu clube e que é bem mostrado pela seriedade e cansaço que Malu Galli dá a personagem, como também o questionamento do valor da denúncia partir de Davi, um sujeito bruto, vivido com intensidade por Marco Ricca, e que não sabe se comunicar com o filho e que se trata daqueles estúpidos que associam pedofilia com homossexualidade e se defendem com o “tenho vários amigos gays”.
Sabendo também utilizar o desenho de som para simplesmente criar subjetividade ao acompanhar o som abafado da água da piscina quando alguém se encontra nela, ou pelo uso correto da trilha sonora onde em determinado momento, quando a mãe de Alex decide enviar a mensagem dizendo sobre o abuso, Jabor consegue tornar um momento simples de troca e recebimento de mensagens em algo bastante denso, auxiliado por essa trilha que salienta uma inquietação e aflição ascendente do que está acontecendo e o que aquilo causará.
Se beneficiando de uma bela direção de fotografia, onde constantemente mergulha seus personagens na escuridão, como quando Rubens é iluminado apenas pela luz do celular, a diretora opera muito bem a tensão crescente de sua narrativa, dando tanto sobriedade como pulso, construindo de forma plena o universo tumultuado e sombrio que o protagonista se deslumbra, onde por mais que o desejo interno seja o de puni-lo, não há como compactuar com o linchamento que sofre, o que aborda também o fenômeno errôneo do “justiça feita pelas próprias mãos”.
Encerrando-se de maneira abrupta e com o clichê de quebra da quarta parede do protagonista, mas eficaz por terminar assim que sente que o arco do personagem se concluiu, Aos Teus Olhos (que ganhou um título em inglês muito melhor e mais apropriado ao tema: Liquid Truth) tenta funcionar de forma dúbia e embora não atinja totalmente esse objetivo, ainda sim sua diretora consegue dar tensão e peso dramático a narrativa e ser fiel as consequências que o linchamento virtual pode desdobrar para qualquer indivíduo.