Uma das melhores estreias da Netflix no final de 2021, Ataque dos Cães / The Power of the Dog é muito mais do que um simples faroeste. É um filme que trata de questões profundas envolvendo masculinidade e relacionamentos tóxicos, construindo a tensão aos poucos, como se tece uma corda. Dirigido pela premiada cineasta Jane Campion (de O Piano e Retrato de Uma Mulher), o longa recentemente levou o Globo de Ouro de melhor filme – drama e também melhor direção e melhor ator coadjuvante (para Kodi Smit-McPhee), além de ter sido indicado em outras 4 categorias.
O filme se baseia em um livro escrito em 1967 por Thomas Savage, famoso autor de romances no Velho Oeste americano. O título original (The Power of The Dog) vem de um versículo da Bíblia: “Livra-me da espada, livra a minha vida do ataque dos cães.” (Salmo 22). A história se passa nos anos 1920 e acompanha dois irmãos, Phil (interpretado por Benedict Cumberbatch) e George Burbank (Jesse Plemons), que são donos de um rancho de gado em Montana, nos Estados Unidos (embora as filmagens tenham acontecido na Nova Zelândia, terra natal da diretora). Quando George se casa, começam a surgir conflitos entre Phil e a cunhada, Rose (Kirsten Dunst), mas o cowboy durão acaba estabelecendo uma conexão com o filho adolescente dela, Peter (Kodi Smit-McPhee).
O Salmo, citado no título, refere-se a Jesus morrendo na cruz, e está relacionado à atmosfera de dor e angústia que cerca a história. “De certa forma, a sexualidade é como o sofrimento humano. O título aparece como um aviso. O poder dos cães está em todos aqueles impulsos incontroláveis e profundos, que vêm e nos destroem”, afirmou Jane Campion, em uma entrevista. Com muita habilidade, a diretora toma seu tempo para construir esse mundo árido, ao mesmo tempo lindo e desolador, desenvolvendo personagens que se revelam como pétalas desabrochando – aliás, as delicadas flores de papel criadas pelo jovem Peter são emblemáticas, nesse sentido.
Um dos maiores trunfos de Ataque dos Cães está no elenco excepcional. Benedict Cumberbatch consegue expressar toda a crueldade e também toda a vulnerabilidade de um homem que precisa se reprimir (e oprimir os outros) para se impor e ser respeitado, repetindo padrões de comportamento extremamente nocivos – para si mesmo e para as pessoas à sua volta – por motivos que talvez nem ele mesmo compreenda. São relações de poder que surgem quase que por instinto, em um ambiente essencialmente hostil, criando barreiras difíceis de serem transpostas. Na relação com Peter, Phil acaba baixando um pouco a guarda e se revelando, mas o ego e a necessidade de se auto afirmar são, em última instância, fatores que causam sua própria ruína.
Em uma cena belíssima do filme, Phil comenta o fato de que poucas pessoas conseguem ver o que ele vê nas montanhas. Esse momento, especificamente, chama a atenção para algo que é verdadeiro em qualquer lugar ou época: é muito difícil conseguir se aproximar e se conectar com alguém, sentir que existe uma pessoa capaz de ver o mundo como você. E quando isso acontece, mais difícil ainda é ser capaz de se entregar a essa relação sem que alguém – ou ambos – acabe machucado. A hostilidade de Phil com relação a Rose, na história, parte de um amor possessivo e de ciúmes, por ter sido substituído no coração do irmão. De alguma forma, seu desejo era apenas de proteger um relacionamento essencial em sua vida. Esse é o mesmo sentimento de proteção da pessoa amada, acima de qualquer outra coisa, que está em Peter: “Porque que tipo de homem eu seria, se não ajudasse minha mãe?”