Kleber Mendonça Filho é um dos principais expoentes do cinema feito no Nordeste. Responsável por filmes como O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), o diretor geralmente situa suas tramas em Pernambuco. O cinema de Kleber dialoga com a atualidade, sem medo de abordar temas espinhosos e tecer críticas políticas. Já Juliano Dornelles atuou como diretor de arte em vários filmes de Kleber e é responsável por conduzir o longa O Ateliê da Rua do Brum (2016). Juntos, assinam Bacurau, longa vencedor do Prêmio do Júri em Cannes este ano.
Ambientado alguns anos no futuro, a produção se passa na vila homônima ao título, no interior de Pernambuco. Logo no início vemos como a morte de Dona Carmelita (Lia de Itamaracá) mobiliza a cidade. Sua neta, Teresa (Barbara Colen), vem para o enterro, assim como muitos outros parentes. Durante o velório conhecemos um pouco a estrutura organizacional da cidade: Domingas (Sonia Braga) administra o posto de saúde, Plínio (Wilson Rabelo) é um tipo de líder popular e Pacote (Thomas Aquino) é o conhecido bandido da região.
Após o enterro, Teresa decide ficar alguns dias em Bacurau e é então que situações inusitadas começam a acontecer. Entre elas o sumiço da cidade dos mapas online e a chegada de dois forasteiros (Karine Teles e Antonio Saboia). Tais acontecimentos colaboram para o clima de estranheza do filme. Durante todo o primeiro ato o espectador se enche de perguntas geradas por cenas inusitadas, como o caixão se enchendo de água, e pela sensação de que a vila esconde muitos segredos.
Demonstrando apuro técnico, os diretores mantêm o público fisgado na história, que culmina em um terceiro ato carregado de suspense. Durante a sessão era possível ver as pessoas se inclinando nas cadeiras, arrebatadas por uma curiosidade desconfortável.
Isso se dá pela atualidade de Bacurau. Kleber e Juliano não hesitam em fazer do filme um manifesto contra a política brasileira. A população da cidade tem verdadeira ojeriza pelo prefeito, um típico homem público que só aparece na época de campanhas eleitorais. Tony (Thardelly Lima) traz presentes em troca de votos. Entre os agrados está um remédio tarja preta que deixa quem o toma em estado apático. Ora, o sonho de todo político não é justamente uma população passiva, que não contesta suas decisões?
Pois o povo de Bacurau não é assim. Em uma das cenas mais inspiradas do longa, vemos Tony encarar o vilarejo aparentemente vazio. Ninguém para receber suas esmolas. Contudo, antes que vá embora, recebe um mar de vaias e xingamentos sem rosto. Mesmo dentro de suas casas, os habitantes demonstram sua insatisfação. No decorrer da narrativa descobrimos que a podridão do governo local e seu desprezo pela vida humana é um microcosmo da política nacional. Algo que, por se assemelhar tanto com a realidade atual, provoca arrepios.
Contudo, diferente das rixas partidárias e ideológicas que dividem a população de hoje, em Bacurau existe uma verdadeira comunidade. A cidade não obedece a um governo, mas sim a uma liderança informal organizada pelos próprios moradores. Eles não precisam do apoio de prefeitos, religiosos ou forças policiais. A igreja, por exemplo, é usada como depósito. A segurança é feita por habitantes locais. A fé dos moradores não parece estar em Deus, mas sim neles mesmos. A prova está no museu da cidade: nos oratórios expostos, que deveriam conter imagens para veneração, estão fotos de cangaceiros.
Em sua seara de temas, o filme também aborda a questão da xenofobia nada velada no Brasil. Não é de hoje que sulistas e sudestinos agem com superioridade diante de nortistas e nordestinos. Aqui essa incongruência é personificada nos forasteiros. Eles exibem um olhar de curiosidade, como se as pessoas de Bacurau fossem seres pitorescos. Já diante dos americanos, os personagens de Teles e Saboia tentam se justificar, explicando suas raízes europeias. Um comportamento típico dos brasileiros que buscam se equiparar aos estrangeiros, negando a miscigenação e buscando provar descendências do dito primeiro mundo. A resposta dos americanos aos forasteiros é clara “Vocês não parecem europeus. Vocês são latinos”.
Por fim, Mendonça Filho e Dornelles brincam com os gêneros e, entre mistérios e suspenses, transformam o longa em um western pernambucano. Insinuações dessa empreitada despontam desde as transições iniciais, onde uma cena invade a outra, recurso muito utilizado no tradicional gênero americano. Nas sequências envolvendo a equipe americana o estilo fica ainda mais evidente, devido o emprego de outras conhecidas técnicas dos westerns.
Ao lançarem mão desse artifício, a mensagem dos diretores se torna clara. Que contradição é assistirmos a tantos títulos estrangeiros, que em nada refletem a cultura local, quando temos histórias nacionais muito mais intensas. Afinal, apenas no universo western, qual narrativa sobre a conquista do oeste americano pode ser mais forte que as escaramuças dos cangaceiros?
Quanto à técnica, Bacurau também não decepciona. A equipe de arte soube preservar o ar de uma cidade de interior e usou objetos de cena a seu favor. Já a fotografia trabalhou as cores com cuidado, criando uma consonância de tons agradáveis ao olhar. Vale ressaltar ainda a consistência do roteiro, que abre e encerra a trama com situações complementares e é composto apenas por cenas que levam o filme adiante.
Outro elemento impecável é a montagem. Diferente do tradicional, não temos cenas de ações rápidas com vários cortes, mas sim longas sequências que nos permitem apreciar a situação criada em tela. Ainda subvertendo convenções, o ato final, que concentra a resolução do suspense, não acontece a noite, mas sim de dia. Toda a ação é bem planejada e filmada. Nada de movimentos bruscos que confundem o público. Tudo está exposto a olhos vistos.
Essa visualidade é um verdadeiro presente para o espectador. Graças a ela conseguimos captar pedaços importantes da história sem que os personagens precisem de uma linha de diálogo. O resultado dessa combinação é um filme com ritmo cativante, que mantém o público em permanente estado de angústia.
De qualidade incontestável, Bacurau mostra a força do cinema brasileiro, de sua originalidade e capacidade criativa. Assisti-lo nos cinemas é necessário, prazeroso e emocionante. Se eu puder dar apenas um conselho a vocês, seria este: prestigiem essa obra singular.