Depois de dez anos do lançamento do último filme solo do homem-morcego que fechou a trilogia de Christopher Nolan com Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), e de dividir espaço com outros heróis na tentativa de universo compartilhado da DC criado por Zack Snyder, o herói ganha uma nova versão com Batman (2022). A nova adaptação dos quadrinhos é encabeçada pelo diretor Matt Reeves que recentemente dirigiu os dois últimos filmes da última trilogia de Planeta dos Macacos. Mas a questão que atormentava o grande público era como Robert Pattinson, que até outro dia era um vampiro brilhante na saga teen, Crepúsculo, se sairia num papel tão cobiçado quanto o morcego. Já te adianto que ele foi bem.
Aqui o filme se distancia de uma ameaça mundial e até interplanetária que a DC iniciou no universo criado por Zack Snyder em O Homem de Aço (2013) , explorada em Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016) e Liga da Justiça (2017), e outras produções que pretendiam disputar espaço com a já bem-sucedida e consolidada saga, e se restringe apenas ao universo da cidade de Gotham. O que por si só já é uma ideia excelente. Isso evita a busca por ideias mirabolantes para resolver problemas igualmente mirabolantes como quem venceria a luta entre Batman e Superman. Lembra como foi resolvido? Pois é. Aqui os problemas do herói envolvem tráfico de drogas, terroristas e traumas de infância e circundam apenas os limites da cidade. Isso evita também outros “problemas” como a exigência daquela batalha final coreografada entre herói e vilão e outros padrões das adaptações de quadrinhos que buscam entregar um filme praticamente igual ao lançado há dois meses.
Em Batman temos uma Gotham muito parecida com a cidade de Seven – Os Sete Crimes Capitais (1995) que lá não tem nome, mas é sempre muito suja e parece que chove quase o tempo inteiro. Aliás, ponto para a direção de fotografia que contribuiu bastante para essa “sujeira” e sombras que o herói utiliza a seu favor para capturar os vilões. Sai também aquela estética recheada de CGI bem típica dos filmes de herói atual e entra uma visão realista da cidade, mas não uma visão progressista da versão de Christopher Nolan. O que é um cenário perfeito para ilustrar um lugar corrupto e quase sem esperança.
Para além da cidade, outros elementos aproximam Batman do clássico noventista de David Fincher. A dupla de detetives que em Seven era vivida por Brad Pitt como David Mills e Morgan Freeman como Detetive Somerset aqui é substituída por Pattinson como Bruce Wayne / Batman e Jeffrey Wright como James Gordon, que ainda não é comissário, a procura de um assassino em série/ terrorista que busca transmitir uma mensagem para o mundo, obviamente de uma forma bem torta. A cada instante, o filme nos aproxima das descobertas como se participássemos com os dois desvendando as pistas. Isso, inclusive, é um dos elementos que nos deixa mais envolvidos. Claro que com momentos de lutas e corridas de Batmóvel (aliás uma das cenas mais legais do filme), mas que surgem somente em momentos extremamente necessários e não como algo gratuito para garantir a atenção da plateia. Temos a versão mais detetivesca de Batman até hoje.
Outra produção de David Fincher que aparece aqui é Zodíaco (2007). Além da busca por um assassino em série, a máscara que essa versão do Charada (Paul Dano) usa, é bem próxima a utilizada pelo assassino que existiu realmente e que nunca foi preso. Na verdade, muito do universo de Fincher aparece aqui, principalmente a ideia de que a sociedade é suja, corrupta e que crimes violentos apenas escancaram isso para o mundo. Isso está presente, além das obras citadas em Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011), Garota Exemplar (2014) e até na série Mindhunter (2017), que Fincher produz. Esse mal-estar social, circunda não somente a cidade de Gotham como ao próprio Bruce Wayne e até a sua família. Diferente de outras versões em que os pais de Bruce eram figuras quase imaculadas, aqui elas são problematizadas e até fazem parte dos problemas que o próprio herói tenta resolver. Coisa que foi explorada também em Coringa (2019).
Como ainda é um “herói juvenil”, essa versão de Batman / Bruce Wayne ainda não tem todo o preparo que o herói ficou famoso, e até virou meme, possui. Isso é visto primeiro nas cenas de ação em que, mesmo que ainda se dê muito bem no embate com os bandidos, muitas vezes ele tropeça, se desengonçada e até tem problemas em utilizar seus famosos equipamentos. Além disso, temos um personagem que ainda não está 100% seguro sobre seus objetivos. O drama da perda dos pais ainda é muito presente e o refúgio que ele encontrou para lidar com isso, se tornando um vigilante, ainda é confuso em sua vida. Enquanto em outras versões, como na trilogia Cavaleiro das Trevas, Bruce e Batman são quase opostos e um é utilizado para encobrir a identidade do outro, em Batman ele ainda não consegue diferenciar muito bem quando é um e quando é outro.
A tristeza e um certo luto ainda paira sobre sua cabeça de uma forma muito forte, se tornando uma figura reclusa e que basicamente só sai à noite. É justamente aí que Robert Pattinson, brilha (pegou a referência?). A atuação dele é retraída, quase sem expressões. As palavras são contadas e vemos emoção em seus olhos basicamente quando a raiva se torna incontrolável. Acredito que muita gente vai se surpreender positivamente e ver o ator com outros olhos. Aliás, ele já tinha provado que conseguia ir para além da saga adolescente em outras produções como Bom Comportamento (2017), O Farol (2019) ou O Diabo de Cada Dia (2020). Se não conhece, já emendo com essas indicações.
E falando em atuação, todos os personagens e atores estão muito bem. O tempo de tela e a aparição de cada um segue equilibrada e nenhum personagem está desperdiçado, apenas para cumprir tabela. James Gordon tem quase tanta relevância quanto o Batman na hora de analisar as provas. A diferença é que não é o nome dele que está no título do filme e nem tem as mesmas habilidades que o homem morcego tem. Zoë Kravitz energiza muito bem o papel como Mulher Gato / Selina Kyle e cria uma química única ao atuar como um par às avessas com Pattinson. Ela entrega uma versão bem mais interessante do que a de Anne Hathaway em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, e quase tão marcante quanto Michelle Pfeiffer em Batman: O Retorno (1992). Já Paul Dano cria uma versão única do Charada que se aproxima bastante de John Doe (Kevin Spacey) de Seven. Bom, quanto a comparações com a versão de Jim Carrey em Batman Eternamente (1995), acho que nem precisa comentar.
Assistir a Batman é uma experiência com o herói que não tínhamos tido até então. É um filme muito mais investigativo do que propriamente de herói. O lado “bugigangas”, cenas de luta e corrida com o Batmóvel, são os elementos que trazem essa certeza de ser uma adaptação de quadrinhos. Acrescentar uma dose de Kurt Cobain com a música Something in the Way, do Nirvana também ajudou a dar mais peso e dramaticidade ao personagem. A música foi composta por Kurt sobre um tempo que ele ficou vagando sem casa e que contava por aí que chegou a morar debaixo da ponte, o que não era exatamente verdade. Mas, o que a letra diz seria que tinha alguma coisa no caminho e isso seria ele próprio.
O mesmo sentimento que Bruce exprime no filme. Sem saber lidar com os próprios sentimentos, uma falta de habilidade social para lidar com os negócios da família e ainda com uma carga de expectativas gigantes em cima dele devido a uma imagem que seu pai construiu e que ele vai descobrindo não ser tão brilhante assim. Além, é claro, dos desafios de tentar combater o crime. Finalmente temos um Batman interessante e complexo depois de tanto tempo emerso em um mundo de CGI e tentativas de copiar a concorrência.