O cenário perfeito: ao contrário da última vez que fui ao cinema pra ver um suspense – Um Lugar Silencioso (2018) – com um sujeito que não calava a boca sentado na cadeira de trás, dessa vez a sala estava quase vazia, 10 pessoas esperando por um filme que não dava nem pistas do que ia rolar. Acreditem, o trailer (felizmente) entrega muito pouco.

O jogo de – poucas – luzes em cena contrastado com pequenos efeitos luminosos e sonoros se misturava aos poucos ruídos e a baixa luz da sala não tão grande assim, mas que ficou enorme com tanta cadeira vazia e tanta gente presa a sua própria poltrona, sem conseguir se mexer do início ao fim.

Pelos últimos títulos de terror/horror/suspense que tenho visto nos últimos anos, e aqui posso citar Corra (2017), O Homem nas Trevas (2016), Corrente do Mal (2015), A Visita (2015) – vamos falar mais de Shyamalan por aqui – Creepy (2016) e alguns que virão aí na sequência desse texto, foi surpreendente acompanhar uma reviravolta imprevisível ainda antes da metade do filme. O sentimento nem é só de surpresa, mas de muita curiosidade pelo que estava por vir depois da sequência agoniante de Peter (Alex Wolff) pilotando desesperado por uma estrada desértica com sua irmã no banco de trás. Sua situação lembrou bastante o drama de Tony Hastings (Jake Gyllenhaal) no road movie Animais Noturnos (2016). Família em perigo e pé no acelerador em uma estrada escura e sem fim. Pilotar carregando crianças em situações de risco aliás parece ser uma especialidade de Gyllenhaal, como a desesperadora cena do detetive Loki, em Os Suspeitos (2013).

O diretor Ari Aster, fissurado em filmes de terror, construiu em seu primeiro longa-metragem uma teia de acontecimentos bizarros que gira em torno de algo maior. Mais do que somente a presença da falecida avó da família Graham. É como se o mal estivesse sempre à espreita. Como se ele fosse muito mais do que apenas algo a ser evitado. Ele tem sua estrutura, sua força e características próprias, e precisa ser respeitado. De fato, nenhum dos personagens parece estar imune à maldição que paira sobre a família.

Essa força do mal aos poucos vai atormentando personagem a personagem. A câmera por muitas vezes parece assumir a visão desse mal como na cena inicial, quando esse olhar invade a maquete que assume a forma exata do encontro entre Steve e Peter no momento em que o pai interrompe o sono matinal para convocar o filho pro velório da avó. Ou então quando Peter chega em casa após mais um momento desgraçado e é espionado pelo olhar perturbador da mãe, dentro do carro.

Peter está sempre entre a pouca luz – que dá esperança de saída nos momentos mais tensos da trama – e as trevas desse mal. A sensação pra quem está pregado na cadeira assistindo Hereditário é uma mistura de tensão, angústia, estarrecimento e torcida pro dia chegar logo. As cenas que envolvem pouca luz e que parecem indicar que a desgraça está por perto acontecem em instantes que o espectador acaba desejando o fim da noite, como se o alvorecer fosse mais forte que qualquer maldição e pudesse salvar cada vítima do destino sinistro que se anunciava.

Há muito de A Bruxa (2015) em Hereditário. Além da produção de Lars Knudssen – que trabalhou com o diretor Robert Eggers em seu primeiro longa-metragem e que também estará na produção de seu próximo filme, Nosferatu (2019) – a maldição que assola uma família inteira e que acompanha cada passo dos personagens deixa no ar um clima de ameaça oculta pronta pra explodir a qualquer momento, como no primeiro filme de Eggers. Talvez possa ter sido exagerada apenas a quantidade de sinais (feixes luminosos, sons, visões e ilusões) pra representar essa ameaça em Hereditário. Ao mesmo tempo, penso que como há uma incursão em mentes perturbadas, esse excesso pode acabar sendo positivo no sentido de tentar demonstrar a confusão causada no cérebro de cada um dos membros da família Graham.

E não dá mesmo pra saber o que cada acontecimento vai trazer de novo ou como vai influenciar o desdobramento do restante do filme. A tensão não está presente só no durante. Não ter ideia do que vem pela frente é intimidador. A construção do total – só percebida no final – é bem maior do que o desfecho. Esse equilíbrio, que também fez parte de A Bruxa é o que instiga a expectativa a ser renovada durante os 126 minutos, que em alguns momentos são como uma eternidade e em outros parecem sumir virando pó como a metade do universo em Vingadores: Guerra Infinita (2018).

De certa forma tenho uma relação de amor e ódio com Hereditário. Por um lado penso que talvez fosse melhor eu nunca ter entrado naquela sala de cinema. Mas, é desafiadora e renovadora a sensação do contato com um filme que praticamente não tem como ser ignorado.

O movimento contorcido do corpo de Annie na cena das cabeçadas no sótão evoca a lembrança do spiderwalk de Regan em O Exorcista (1974). Se fosse possível elencar uma personagem mais sinistra dentro da família Graham, com certeza Annie estaria bem próxima do topo da lista. É quase impossível esquecer do olhar de Toni Collette e sua expressão parecida com a não menos estranha Wendy Torrance de O Iluminado (1980). Quando Annie flutua pela casa, parece carregar consigo a carga pesada dos espíritos de O Sexto Sentido (1999). Quando prefere aguardar Peter no alto da parede – como uma aranha prestes a dar o bote final na vítima presa em uma teia invisível – ela ganha ares da besta de Fragmentado (2017).

A sensação é a de sair do cinema levando pra casa mais do que medo. Hereditário é um mergulho em mentes perturbadas que revela a linha tênue atravessada por quem consciente ou inconscientemente flerta com o bem e o mal, tentando sem sucesso se equilibrar entre dois lados de uma mesma moeda. Isso onde um não existe sem o outro, mas onde sempre haverá uma batalha infinita pela anulação de seu oposto.

Hereditário

Hereditário (Hereditary)

Ano: 2018
Direção: Ari Aster
Roteiro: Ari Aster
Elenco principal: Alex Wolff, Ann Dowd, Gabriel Byrne, Milly Shapiro, Tony Collette
Gênero: ​Drama, Suspense, Thriller
Nacionalidade: Estados Unidos da América

Avaliação Geral: